via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 3/21/10
A MEIO DE UM ESTÁGIO CIENTÍFICO de três anos, em Paris, mais precisamente no verão de 1963, viemos, eu e a Isabel, gozar um mês de vacances com a família. O regresso à capital dos franceses, fizemo-lo, um mês depois, no Sud-express. Com saída de Santa Apolónia, cerca do meio-dia, chegava à Gare d'Austerlitz pelas dezoito horas do dia seguinte. Aguardavam-nos trinta intermináveis horas de "pouca-terra" e imensos silvos sonoros, durante a noite, ao longo do vasto planalto de Castela-a-Velha e dos profundos vales e escarpados dos Cantábricos.
Pouco comum para a época, o dia começara e ia manter-se chuvoso e ventoso, o que me impedia de cumprir o que tanto gostei desde criança – fazer quilómetros e quilómetros debruçado numa das janelas do corredor, sentir a velocidade e o vento e apreciar a extensão do comboio sempre que as curvas tinham a concavidade do meu lado.
Acomodados num compartimento de primeira classe, em outra companhia que não fossem um adequado farnel e uns livros para matar o tempo, tínhamos a confortar-nos o prazer de regressar ao trabalho que ali desenvolvíamos.
Num outro compartimento da mesma carruagem viajava – soubemo-lo porque ele próprio no-lo fez saber – um agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado, mais conhecida pelo acrónimo PIDE. Nesse tempo era regra que o percurso ferroviário entre Lisboa, Vilar Formoso e vice-versa, fosse acompanhado por um funcionário desta odiada instituição que juntamente com a censura constituíam o suporte musculado de um poder ilegítimo que nos asfixiava e amesquinhava aos olhos do mundo esclarecido. Era sua função verificar passaportes e, certamente, proceder a outras acções de vigilância política dos passageiros.
Passados uns minutos da partida, o tempo suficiente para colocar as malas nos incómodos e altos alojamentos destinados ao arrumo da bagagem, o agente da Pide surgiu-nos à porta do compartimento ainda aberto. Depois de um respeitoso Boa tarde, e de mostrar a identificação, pediu-nos os passaportes. O meu era um documento oficial, de capa vermelha, que o distinguia do dos comuns dos passageiros, passado pela mesma polícia que o credenciava, e isso deve-lhe ter dado o ar cordial com que estabeleceu um primeiro e curto diálogo.
-Irei convosco até à fronteira. Até lá tenho de verificar a documentação dos passageiros. Há dias em que quase não tenho tempo de fazer todo o trabalho, tantos são os emigrantes. Amanhã regresso no Sud e faço trabalho semelhante com os que entram. Não se gasta tempo nem nas partidas nem nas chegadas. Estou no compartimento ao lado, se necessitarem de algo, façam favor de dizer – e retirou-se.
Com gabinete improvisado num dos compartimentos da primeira classe, o agente começava por percorrer todo o comboio, recolhendo os passaportes dos viajantes com destino ao estrangeiro. Instalava-se, depois, no seu compartimento e, um a um, verificava todos aqueles documentos, entre os quais não era raro aparecerem algumas contrafacções. Organizações à margem da lei arranjavam passaportes falsos para perseguidos políticos, emigrantes clandestinos ou para as famílias daqueles que já se haviam fixado nos locais onde trabalhavam.
A meio da tarde, estávamos nós no corredor da carruagem, olhando o temporal através dos vidros, o agente aproximou-se, trazendo consigo meio aberto, na mão, um passaporte e, num tom quase familiar comentou.
- Só uma extrema ignorância faz com que alguém pague uma fortuna por uma coisa desta que se vê logo que é falsa. É a capa, é o papel, são as letras. É tudo falso! Acabei de o receber das mãos de uma passageira. Carregada de cestos e sacos e ainda por cima doente, vai, assim, sozinha para França, onde tem o marido e o único filho. E dá-me isto para as mãos, ingenuamente, na ilusão de que tudo está em ordem.
Deu-nos, então, aquele passaporte a ver. De facto, não passava de um caderninho mal acabado, que não deixava dúvidas quanto à sua origem fraudulenta e de péssima qualidade. As únicas verdades ali presentes eram o nome da portadora e a sua fotografia.
- O que é que eu posso fazer com isto? Prendo-a? De prender gostava eu os criminosos sem escrúpulos que roubam estas desgraçadas. Se fecho os olhos e a deixo passar, corre o risco de ser presa na fronteira com a França e ser recambiada sabe Deus em que condições.
- Talvez não – ripostei, na intenção de o encorajar, acrescentando: - De todas as vezes que tenho entrado em França, saindo de Espanha, da Bélgica ou da Alemanha, eles nem olham para o passaporte.
- Pois é – respondeu com ar de manifesta preocupação. - Mas se der para o torto, também eu fico em maus lençóis.
Antes da Guarda começámos a sentir um desacelerar brusco e contínuo da marcha e, por fim, a travagem em pleno campo. Foi uma sorte. Podíamos ter descarrilado. A espera que se seguiu, mais de duas horas, até que o piquete de desobstrução da linha concluísse o trabalho, permitiu que falássemos um pouco mais com o agente. Um fortíssimo silvo atravessou a noite chuvosa. Seguiu-se-lhe o chiar das carruagens no arranque da marcha.
- Ainda tenho montes de papelada para arrumar e passaportes para entregar antes de chagarmos à fronteira – despediu-se, agradecendo a atenção que lhe havíamos dado.
Parados em Vilar Formoso e à janela sobre a gare, vimos o agente sair do comboio acompanhado de uma mulher de pequena estatura, magra, de aspecto cansado, aparentando uns cinquenta e muitos anos. Ele virou-se para nós e, com um jeito de cabeça, indicou-nos ser aquela a passageira do tal passaporte falsificado.
Não mais os vimos. O Sud entrou em Espanha onde o percurso se fez durante a noite. O céu limpara e a noite, de breu, permitia a visão de miríades de estrelas, tantas que, aqui e ali, mais pareciam partículas de uma poeira iluminada. Golpes de vento traziam até nós o matraquear da máquina, ainda a vapor, sobrepondo-se ao "pouca-terra", "pouca-terra" dos rodados da nossa carruagem sobre os carris.
Procurando recuperar o atraso, todo o percurso no planalto de Castela foi feito na máxima velocidade. Em Hendaia o Sud francês não esperaria por nós. Ao romper da manhã, numa curtíssima paragem numa gare perdida na imensidão desértica da paisagem, pudemos saborear os bocadillos de jamon acompanhados de café com leite a escaldar, servidos em grandes copos de vidro. Dois longos apitos do comboio e a voz do revisor, pondo termo a esta que foi a última paragem, retomámos os nossos lugares para vencer a etapa que nos levaria à Europa democrática.
À entrada em Hendaia ninguém se interessou pelos nossos passaportes, confirmando o que eu dissera ao agente. Depois seguiu-se uma viagem mais veloz, menos ruidosa. Reabrimos o farnel e esperámos pacientemente pela chegada a Paris, o que aconteceu à hora e ao minuto previstos, como já então era apanágio dos Caminhos-de-Ferro franceses. Aí, no meio da enorme confusão de gente que descia do comboio, de malas, cestos e sacos à portuguesa, e dos muitos familiares aguardando na gare, vimos a mulher do passaporte falsificado, tralha no chão, sorridente, abraçada aos seus homens.
(In: "Fora de Portas - Memórias e Reflexões", Âncora Editora, 2008)
Pouco comum para a época, o dia começara e ia manter-se chuvoso e ventoso, o que me impedia de cumprir o que tanto gostei desde criança – fazer quilómetros e quilómetros debruçado numa das janelas do corredor, sentir a velocidade e o vento e apreciar a extensão do comboio sempre que as curvas tinham a concavidade do meu lado.
Acomodados num compartimento de primeira classe, em outra companhia que não fossem um adequado farnel e uns livros para matar o tempo, tínhamos a confortar-nos o prazer de regressar ao trabalho que ali desenvolvíamos.
Num outro compartimento da mesma carruagem viajava – soubemo-lo porque ele próprio no-lo fez saber – um agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado, mais conhecida pelo acrónimo PIDE. Nesse tempo era regra que o percurso ferroviário entre Lisboa, Vilar Formoso e vice-versa, fosse acompanhado por um funcionário desta odiada instituição que juntamente com a censura constituíam o suporte musculado de um poder ilegítimo que nos asfixiava e amesquinhava aos olhos do mundo esclarecido. Era sua função verificar passaportes e, certamente, proceder a outras acções de vigilância política dos passageiros.
Passados uns minutos da partida, o tempo suficiente para colocar as malas nos incómodos e altos alojamentos destinados ao arrumo da bagagem, o agente da Pide surgiu-nos à porta do compartimento ainda aberto. Depois de um respeitoso Boa tarde, e de mostrar a identificação, pediu-nos os passaportes. O meu era um documento oficial, de capa vermelha, que o distinguia do dos comuns dos passageiros, passado pela mesma polícia que o credenciava, e isso deve-lhe ter dado o ar cordial com que estabeleceu um primeiro e curto diálogo.
-Irei convosco até à fronteira. Até lá tenho de verificar a documentação dos passageiros. Há dias em que quase não tenho tempo de fazer todo o trabalho, tantos são os emigrantes. Amanhã regresso no Sud e faço trabalho semelhante com os que entram. Não se gasta tempo nem nas partidas nem nas chegadas. Estou no compartimento ao lado, se necessitarem de algo, façam favor de dizer – e retirou-se.
Com gabinete improvisado num dos compartimentos da primeira classe, o agente começava por percorrer todo o comboio, recolhendo os passaportes dos viajantes com destino ao estrangeiro. Instalava-se, depois, no seu compartimento e, um a um, verificava todos aqueles documentos, entre os quais não era raro aparecerem algumas contrafacções. Organizações à margem da lei arranjavam passaportes falsos para perseguidos políticos, emigrantes clandestinos ou para as famílias daqueles que já se haviam fixado nos locais onde trabalhavam.
A meio da tarde, estávamos nós no corredor da carruagem, olhando o temporal através dos vidros, o agente aproximou-se, trazendo consigo meio aberto, na mão, um passaporte e, num tom quase familiar comentou.
- Só uma extrema ignorância faz com que alguém pague uma fortuna por uma coisa desta que se vê logo que é falsa. É a capa, é o papel, são as letras. É tudo falso! Acabei de o receber das mãos de uma passageira. Carregada de cestos e sacos e ainda por cima doente, vai, assim, sozinha para França, onde tem o marido e o único filho. E dá-me isto para as mãos, ingenuamente, na ilusão de que tudo está em ordem.
Deu-nos, então, aquele passaporte a ver. De facto, não passava de um caderninho mal acabado, que não deixava dúvidas quanto à sua origem fraudulenta e de péssima qualidade. As únicas verdades ali presentes eram o nome da portadora e a sua fotografia.
- O que é que eu posso fazer com isto? Prendo-a? De prender gostava eu os criminosos sem escrúpulos que roubam estas desgraçadas. Se fecho os olhos e a deixo passar, corre o risco de ser presa na fronteira com a França e ser recambiada sabe Deus em que condições.
- Talvez não – ripostei, na intenção de o encorajar, acrescentando: - De todas as vezes que tenho entrado em França, saindo de Espanha, da Bélgica ou da Alemanha, eles nem olham para o passaporte.
- Pois é – respondeu com ar de manifesta preocupação. - Mas se der para o torto, também eu fico em maus lençóis.
Antes da Guarda começámos a sentir um desacelerar brusco e contínuo da marcha e, por fim, a travagem em pleno campo. Foi uma sorte. Podíamos ter descarrilado. A espera que se seguiu, mais de duas horas, até que o piquete de desobstrução da linha concluísse o trabalho, permitiu que falássemos um pouco mais com o agente. Um fortíssimo silvo atravessou a noite chuvosa. Seguiu-se-lhe o chiar das carruagens no arranque da marcha.
- Ainda tenho montes de papelada para arrumar e passaportes para entregar antes de chagarmos à fronteira – despediu-se, agradecendo a atenção que lhe havíamos dado.
Parados em Vilar Formoso e à janela sobre a gare, vimos o agente sair do comboio acompanhado de uma mulher de pequena estatura, magra, de aspecto cansado, aparentando uns cinquenta e muitos anos. Ele virou-se para nós e, com um jeito de cabeça, indicou-nos ser aquela a passageira do tal passaporte falsificado.
Não mais os vimos. O Sud entrou em Espanha onde o percurso se fez durante a noite. O céu limpara e a noite, de breu, permitia a visão de miríades de estrelas, tantas que, aqui e ali, mais pareciam partículas de uma poeira iluminada. Golpes de vento traziam até nós o matraquear da máquina, ainda a vapor, sobrepondo-se ao "pouca-terra", "pouca-terra" dos rodados da nossa carruagem sobre os carris.
Procurando recuperar o atraso, todo o percurso no planalto de Castela foi feito na máxima velocidade. Em Hendaia o Sud francês não esperaria por nós. Ao romper da manhã, numa curtíssima paragem numa gare perdida na imensidão desértica da paisagem, pudemos saborear os bocadillos de jamon acompanhados de café com leite a escaldar, servidos em grandes copos de vidro. Dois longos apitos do comboio e a voz do revisor, pondo termo a esta que foi a última paragem, retomámos os nossos lugares para vencer a etapa que nos levaria à Europa democrática.
À entrada em Hendaia ninguém se interessou pelos nossos passaportes, confirmando o que eu dissera ao agente. Depois seguiu-se uma viagem mais veloz, menos ruidosa. Reabrimos o farnel e esperámos pacientemente pela chegada a Paris, o que aconteceu à hora e ao minuto previstos, como já então era apanágio dos Caminhos-de-Ferro franceses. Aí, no meio da enorme confusão de gente que descia do comboio, de malas, cestos e sacos à portuguesa, e dos muitos familiares aguardando na gare, vimos a mulher do passaporte falsificado, tralha no chão, sorridente, abraçada aos seus homens.
(In: "Fora de Portas - Memórias e Reflexões", Âncora Editora, 2008)