domingo, 14 de março de 2010

PERDIDOS...

PERDIDOS...

via Caçadores 3441 by Pedro Cabrita on 3/13/10
N´riquinha, 1 de Abril de 1972.
Sábado da Ressurreição, um dia como qualquer outro, perdida que estava já a noção da diferença dos dias, ou o sentido da invocação de alguns deles, quando era a guerra e o isolamento escaldante das Terras do Fim do Mundo que nos marcavam as horas, os dias e os meses por riscar no calendário já meio sebento pregado na parede.
Meio-dia.
Vindo dos lados da Zâmbia, o ruído longínquo de um avião tipo Cessna quebrou por momentos a monotonia daquela manhã, obrigando a um breve esforço de localização e identificação de aproximação, ou não, da aeronave. As visitas eram raras e sempre pelo ar. Mas a expectativa do aparecimento de um qualquer comandante do Batalhão, Zona Militar, ou de Sector em pouso surpresa em "teatros de guerra", que averbasse mais um "acto de bravura" ao cadastro de um eventual candidato ao 10 de Junho, era uma possibilidade sempre presente.
Em breves segundos se percebeu que a aeronave passava a uns bons quilómetros de distância e não se dirigia à N´riquinha, onde também podia fazer escala para reabastecimento.

O Domingo de Páscoa foi transposto dissolvendo na boca as tradicionais amêndoas doces em forma de elaborados esquemas de imaginação, a que alguns juntavam o sabor distante dos folares da terra, mastigados num quase masoquismo de fantasia, cuja aliança com o sol inclemente que os fustigava de manhã à noite, permitia uma breve sensação de realidade. À noite o rancho haveria de desmontar o cenário, como quem desfaz a tenda de feira e retoma o carreiro insonso das agruras da vida.

9:30 de Segunda-feira.
Um ronco potente, que nos reportava por momentos a sons longínquos provindos dos tempos da 2ª Grande Guerra, avassalou repentinamente as cercanias do aquartelamento, desenhando no céu uma figura canhestra de um cinza baço devassado por décadas de um lustro puxado à mão pela eterna pobreza dos tempos.
Era um velhinho PV-2 Harpoon, troando os seus dois motores de 2.000 HP cada, desenhando figuras em volta do aquartelamento, antes de se enfiar à pista e rolar até à porta de armas, onde se quedava por momentos desaparecido numa nuvem de poeira ruiva e fina, da qual cada um de nós preserva ainda uma espécie de memória de estimação em alguns dos recantos menos perecíveis dos sentidos.
Motores parados, haveríamos de esperar alguns minutos até que a nuvem se dissipasse e tornasse possível a aproximação.
Um pouco inquieto apressei-me e nem esperei que a poeirada se acalmasse em definitivo.
Ainda o piloto finalizava as operações habituais de fim de voo, já eu me quedava junto à asa sorvendo o calor do motor ainda em estalidos metálicos de arrefecimento.
A presença inusitada de um avião daquele tipo na N´riquinha só podia trazer maus presságios, normalmente presentes envenenados para a tropa, para quem já chegavam todas as guerras nas quais nos haviam mergulhado.
Minutos volvidos e já descia o meu amigo Capitão Pêpe no seu impecável fato de macaco azul. A ansiedade era tal que nem entrei pelos habituais cumprimentos. Disparei de imediato na esperança meio rançosa de me enganar no prenúncio.
- Vais-me dizer que vou ser atacado e põem o que resta da Força Aérea à minha disposição…!
Logo após um abraço e alguns sorrisos pela graça, que, no fundo, pouco tinha de engraçada…
- Não. A guerra parece que é outra. É que no Sábado caiu um avião, presume-se que aqui na tua área.
- Caiu um avião? Mas que avião? Aqui só há avião a meio da semana com o correio e o Nord às Terças com os géneros.
- Parece que era um mono-motor de uma empresa de Serpa Pinto que faz transporte de passageiros. Uma espécie de táxi aéreo. As últimas informações dizem que saiu do Rivungo no Sábado para reabastecer aqui, mas desapareceu e não deu mais sinal de vida.
Dando voltas à memória recordei o tal sinal de avião de Sábado sinalizado entre a N´riquinha e a Zâmbia, que conferia com a eventual rota vinda do Rivungo.
- Vais ter que me disponibilizar cama, mesa e roupa lavada não sei por quanto tempo. Isto é coisa para demorar, acho eu. Dentro de algum tempo devem começar a chegar aviões da empresa e outros para ajudarem nas buscas. Será aconselhável que preparem combustível para os necessários reabastecimentos.
- Então vamos começar pela mesa? – alvitrei.
- Não. Olha, ainda é cedo; vou dar por aí uma volta. Tendo em conta a rota, pode ser que ele tenha caído aqui por perto por falta de combustível.
E assim foi.
Ronco poderoso assistido por uma fumarada branca a sair dos escapes dos motores e eis que o PV-2 se lança em nova correria pista afora, elevando-se pesado nos ares.
Pouco tempo depois chegam dois aviões ligeiros, conforme prenunciara o Cap. Pêpe. Aterram e solicitam reabastecimento para as buscas que haveriam de ter lugar a partir daquele momento. Trata-se do proprietário do Cessna desaparecido, que dirige ele próprio um dos aviões, e traz consigo um outro também pertença da sua empresa.
Abastecem mas não levantam, porque o comando da operação de busca estava já confiado à Força Aérea, na pessoa do Cap. Pêpe, entretanto no ar.

A operação de busca e localização desenvolve-se por três dias utilizando o PV-2 e os dois aviões ligeiros da empresa, que se foram revezando com outros, sendo que o proprietário se manteve sempre presente no envolvimento das buscas. Presente e sempre muito nervoso. Viríamos a saber mais tarde que esta débil paz de espírito se relacionava com problemas de seguro de vida do piloto desaparecido, desenhando-se o pior dos cenários, caso não fosse encontrado com vida.

Quinta-feira, quarto, e último, dia de buscas, por decisão do Cap. Pêpe, partindo do princípio de que já não seria possível encontrar sobreviventes.
Delineada uma esquadria de busca a distribuir por quatro aviões agrupados num derradeiro esforço para encontrar o avião desaparecido, cada piloto tomou lugar na sua aeronave e levantou. Pêpe foi o último. Antes de subir ao PV-2, lançou-me um desafio:
- Anda daí porque tenho a sensação que nos vais dar sorte. Além disso conheces a zona e podes dar-nos uma ou outra pista.
Eu, que nunca me dei bem com os pés fora de chão firme, fosse em mar ou ar, ainda esbocei alguns argumentos enfeitando a minha relutância.
- Levantas e daqui a meia hora vais ter que me trazer de volta, com o "gregório" em primeiro plano…
- Não. Vamos levar aqui a banheira muito direitinha e sem ondas.
Convenci-me.

Naquele ponto das buscas havia uma única perspectiva; encontrar eventuais sobreviventes. O avião era na altura secundário. No Leste de Angola era frequente a queda de aeronaves sem grandes consequências para os ocupantes, tendo em conta a planura da savana. Logo, se tivessem sobrevivido, haveriam de se movimentar em busca de socorro. Nessa perspectiva, e tendo em conta alguma experiência de sobrevivência no mato que já possuíamos, havíamos sugerido, nos briefings de fim de dia, a busca em chanas abertas com água, porque a sede de cinco dias haveria de os prender num local com água e melhor visibilidade para quem os procurasse.

Tínhamos pouco mais de cinco minutos de voo. Sentava-me num banco solitário plantado a meio do avião, que na verdade voava direitinho, como havia prometido o Pêpe. Sem que nada o fizesse prever, o avião faz uma subida abrupta, para logo de seguida cair sobre a asa esquerda apontando o bico ao chão. Pensei: pregou-me uma partida, o Pêpe. Mas que raio de altura escolhida para brincadeiras.
- Pêpeeeeeeee…! Pára lá com essa m…. – gritei cá bem de trás onde me sentava agarrado a uma pega da fuselagem do avião.
Não obtive resposta no imediato, porque o PV-2 continuava meio louco como se lhe tivesse dado um ataque de nervos. As cabriolas continuavam e eu segurava-me como podia.
Na verdade era quase um verdadeiro ataque de nervos, mas de alegria.
- OS GAJOS ESTÃO ALI…!!! – grita o Pêpe meio embriagado de exultação, abrindo a porta do cockpit e apontando-me para baixo.
Olhei pela pequena janela quando o PV-2 fez um voo rasante ao solo e apenas vislumbrei três pessoas em perfeita loucura no chão: cambalhotas, saltos, abraços, braços no ar.
O Sargento de apoio à tripulação apareceu com um bidão de água preparando-se para o atirar pela porta do avião, entretanto aberta.
- Onde é que você vai com isso? – indaguei.
- Vou atirar aos gajos. Devem estar a morrer de sede. Já passaram cinco dias.
- De sede? Os gajos estão num rio… Estão é a morrer de fome…
O Sargento olhou-me, abanou a cabeça e balbuciou:
- Está a ver, capitão. É o que dá andarmos sempre aqui no ar. Nem nos apercebemos da realidade no chão.

Comunicada a posição dos sobreviventes, o PV-2 regressou de novo sereno e pousou perfeito.
- Como vês, viemos direitinhos como prometi – disse o Pêpe da porta do cockpit entretanto aberta, com uma euforia quase menina estampada no rosto, quando o avião já rolava em movimento lento para parar.
- Pois, mas lá no sítio perdeste a cabeça.
- Encontrar sobreviventes de quedas de aeronaves é a maior alegria que um piloto pode ter. Mas deixa-me contar-te; aquele braço de rio onde os encontrámos estava fora da quadrícula de buscas. Quando cheguei à bifurcação deu-me uma pancada e enfiei o avião naquele pequeno afluente do rio. Foi a sorte deles. Estavam mesmo ali à entrada.

Por volta das 17:00 um helicóptero da F.A. haveria de resgatar os três ocupantes do avião, depois de estes já terem devorado oito rações de combate entretanto lançadas dos aviões.
A história daqueles cinco dias confrontava a simplicidade das circunstâncias com o sofrimento dos três ocupantes do Cessna.
Haviam, na verdade, saído do Rivungo com muito pouco combustível, dirigindo-se à N´riquinha para reabastecer. Um procedimento normal. O piloto, um jovem pouco experiente e desconhecedor daquela área, orientou-se pela carta – antiga e obsoleta, como todas as daquela região – e dirigiu-se à antiga N´riquinha Velha, a dezoito km de distância da actual N´riquinha, sendo aquela a única que figurava na carta.
Desconhecedor da verdadeira localização da pista, ainda não assinalada nos mapas, procurou durante perto de uma hora sem a encontrar, vindo a cair a cerca de 70 km para sul.
As peripécias dariam um pequeno livro.
Num breve resumo.
Eram três os ocupantes: o piloto, um jovem africano com cerca de 23 anos (funcionário da General Electric), que se deslocava a um determinado local para reparar uma avaria, e um outro jovem cabo-verdiano que havia pedido uma boleia no Rivungo.
O jovem africano era a terceira vez que caía de avião…, mas afirmava: "… não será por isto que vou agora começar a andar a pé…".
Nos momentos que antecederam a queda, quando o combustível faltou, enquanto o alvoroço se instalava dentro da aeronave, especialmente por parte do jovem cabo-verdiano gritando que iam morrer todos, o experimentado técnico da G.E. tomava conta dos acontecimentos: "… Calma! Ainda não morremos. Senta e reza. Se não souber rezar, senta só e acalma…".
O piloto tendo apontado para uma chana com mais de 1 km de largura e chão plano onde poderia ter aterrado sem grande dificuldade, entendeu que mais "suave" seria pousar no pequeno curso de água que ali corria. O avião capotou de imediato resultando um ferimento no sobrolho do piloto e a destruição parcial da aeronave.
A deslocação que decidiram empreender a partir do local, procurando encontrar uma picada ou sinais de vida, foi uma epopeia que lhes perdurará pela vida fora.
Sem reservatórios onde pudessem transportar alguma água, deitaram mão das mais incríveis opções. A namorada de um deles acabou sonegada de um perfeito perfume e água-de-colónia refrescante para as tardes de calor ardente; os frascos foram esvaziados e neles acomodados alguns decilitros da preciosa água.
A fome devassou a perspectiva de morte na queda do avião e intricou mirabolantes esquemas de sobrevivência; horas foram passadas em emboscada a um rato que se enfiara num buraco e se recusou obstinadamente a participar naquela história, que, afinal, não era a sua.
Caça em abundância à distância de um tiro de flecha – mas sobranceira a um corta-unhas perdido no fundo do bolso que jamais encontrou préstimo naqueles dias – "… pareciam rir-se de nós...", percebendo-os desarmados e vulneráveis ao fragor de um único rugido de leão a bocejar o términos de uma sesta dormitada à sombra de um embondeiro".
A noite e o medo montaram sentinelas que incendiaram todos os minutos que o cansaço rogava por um breve repouso de corpo e alma.
As horas, depois os dias, faziam bramir um âmago com 500 anos de submissão e a suspeita de uma eterna e vil escravidão: "… os portugueses, onde estão os portugueses que não nos vêm sequer procurar. Que é feito dos portugueses? Onde estão a porra dos portugueses…?", recalcitrava estridente o desespero do jovem africano especialista em inopinados mergulhos na selva africana.

Quinto dia de uma desesperança já assumida e aceite.
Pouco além das 9 horas da manhã.
Um ruído de avião… uma alucinação entre tantas outras… um sonho acordado fermentando um desejo.
Possante e inequivocamente vivo o PV-2 rompe os céus num ronco abrupto e desesperadamente amigo. Cabriola como criança na areia da praia; rasa-lhes as cabeças num afago terno e acolhedor. Agita as asas como que acenando uma alegria que desejava comungar desesperadamente.
Por entre as mais destemperadas manifestações de regozijo, uma voz meio submersa numa emoção de novo escravizada, refunde uma confiança perdida:

"… afinal há portugueses… Olha só os portugueses que estão chegando…! Portugueses! Portugueses…!"

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