terça-feira, 19 de outubro de 2010

NEPTUNISTAS E VULCANISTAS

NEPTUNISTAS E VULCANISTAS

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 10/17/10
O PRIMEIRO CONTACTO do Homem com o magmatismo e com as rochas magmáticas fez-se através do vulcanismo activo, processo geológico que as populações da margem norte do Mediterrâneo puderam presenciar desde sempre. Santorini, ilha grega das Cíclades, no mar Egeu, Vulcano e Estromboli, nas ilhas Lipari, Etna, na Sicília e o Vesúvio, na Itália, foram, além de uma curiosidade, uma enorme preocupação para todos os que viveram ao lado deste vulcões. Ler mais
Píndaro (518-446 a.C.), poeta grego de Tebas, admitia a existência de um canal ardente - typhone - que, em profundidade, ligava a região de Nápoles à Sicília, com ramificações subterrâneas, explicando assim as erupções do Etna e das ilhas Lipari. Platão (429-347 a.C.) falava de um rio subterrâneo de lama fervente e lava, o Pirofiláceo, que serpenteava pelo globo terrestre e alimentava as bocas vulcânicas. Segundo a mitologia grega, Hefestos, deus do fogo, forjou o escudo de Aquiles na ilha de Vulcano, usada por ele como forja. Aristóteles (384-322 a.C.), ao descrever uma erupção nas ilhas Lipari, explicou-a, admitindo que era o ar que ali se incendiava. Mais tarde, o poeta latino Lucrécio (98-55 a.C.) descrevia as erupções do Etna como sendo a actividade de uma fornalha soprada pelo vento marinho Aetna, um poema romano de autor desconhecido, da segunda metade do século I d.C., fala de uma fornalha alimentada por enxofre, alúmen e asfalto que se incendiava devido à presença de lapis molaris uma lava que largava chispas quando percutida, usada como pedra molar ou moleira, como se depreende desta expressão latina, e hoje conhecida por mó ou pedra de moinho. Esta visão poética antecipa a concepção neptunista do século XVIII, do alemão Abraham Gottlob Werner, da Academia de Minas de Feiberga, que, como se verá adiante, defendia que o vulcanismo era alimentado pela combustão de carvão e betume existentes no subsolo. Pela grandiosidade e pelo perigo que representam, os vulcões inspiraram gerações de filósofos, naturalistas, geógrafos e poetas. No ano 44 a.C., Diodorus Siculus, historiador grego, escreveu sobre vulcões e pedras vulcânicas do Vesúvio, do Etna e das ilhas Lipari. Por seu turno, Estrabão (63 a.C.-24 d.C.), ao observar o Etna e as Pitecusas (Ischia), admitiu que os ventos ateavam o fogo vulcânico. Nessa altura, com o Vesúvio adormecido, descreveu-lhe o cimo como um lugar que havia estado incendiado em outros tempos e que se apagara por falta de combustível. Este célebre geógrafo grego procurou relacionar a elevação dos terrenos (admitida a partir da presença de conchas marinhas nas áreas montanhosas) com a existência de um fogo central que alimentava os vulcões. Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), poeta romano, corrobora a visão de Lucrécio e a expendida no dito poema Aetna.

As primeiras preocupações científicas em torno das rochas a que hoje chamamos magmáticas ou ígneas surgem na Alemanha, no século XVIII, na sequência dos trabalhos dos suíços P. S. Pallas, nos Urais, e H. B. Saussure, nos Alpes, do italiano Arduino de Pádua e dos alemães J. C. Füchsel, J. G. Lehman e do já referido, A. G. Werner. Este último, apoiando-se em grande parte nas investigações dos autores atrás citados, publicou, em 1787, uma pequena brochura intitulada "Kurze Klassifikation und Beschreibung der verschiedenen Gebirgsarten", na qual descreve, à luz do saber de então, a sucessão estratigráfica das montanhas do Hartz, na Alemanha, mas que ele, Werner, procurou extrapolar à escala do planeta, numa concepção teórica, global, que fez época e escola, conhecida por teoria neptunista ou neptunismo (do nome do deus romano do mar), a que ficou ligado este que foi mestre do luso-brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva, mineralogista insigne e homem político do seu tempo, mais evocado como patriarca do Brasil.


Das mais antigas para as mais recentes, a sucessão estabelecida por Werner consta de cinco grandes unidades (Gebirge):

1 - Urgebirge, ou unidade primitiva, de que fazem parte granitos, gnaisses, xistos, pórfiros e outras rochas, posteriormente referidas por cristalinas e cristalofílicas, duas designações a caírem em desuso e que correspondem, respectivamente, às rochas magmáticas granulares e às rochas metamórficas com aspecto folheado;

2 - Übergangsgebirge, ou unidade de transição, composta pelos terrenos que actualmente atribuímos ao Paleozóico superior, como grauvaques, calcários e diabases;

3 - Flötzgebirge, representada por terrenos estratificados do Pérmico, Triásico, Jurássico, Cretácico e Terciário, estes últimos incluindo lignitos e basaltos;

4 - Aufgeschwemmte Gebirge, unidade formada por depósitos aluviais (conglomerados, arenitos, argilitos) não consolidados;

5 - Vulkanische Gesteine, unidade constituída por lavas e tufos vulcânicos.

Deve acentuar-se que na concepção neptunista, nem os granitos da Urgebirge, já então descritos nos seus aspectos petrográficos, nem as diabases da unidade de transição, nem sequer os basaltos da unidade Flötz eram aceites como gerados a partir de um magma fundido. Apenas as lavas e os tufos vulcânicos, cuja visibilidade estava bem evidente no vulcanismo activo, eram vistos como tal e, daí, o nome Vulkanische Gestein. Esta sucessão estratigráfica vingou por algumas décadas, até meados do século XIX, com o valor de uma escala litostratigráfica que, embora cheia de imprecisões, era a possível ao tempo. Nesta concepção, que teve ilustres defensores, o médico e naturalista dinamarquês Niels Steensen (Nicolau Steno, 1638-1686), bem conhecido dos cristalógrafos e geólogos, e o filósofo e matemático alemão, Gottfried Wilhelm von Leibnitz (1646-1716), aceitava-se que a Terra estivera completamente coberta por um oceano primordial e que, nas águas deste oceano global, teriam estado em suspensão e/ou em solução todos os componentes que integram as rochas da crosta terrestre.

Os granitos, os gnaisses, os basaltos e os xistos, entre muitas outras rochas, eram considerados como precipitados químicos, constituindo a unidade primitiva. A unidade seguinte, de transição, que se considerava iniciada com a descida do nível das águas desse oceano, teria sido formada simultaneamente por precipitados químicos, como os calcários, e por deposição de materiais detríticos, entre os quais os grauvaques, uns e outros encerrando, por vezes, fósseis, na maioria dos casos, marinhos. A continuação da descida do nível deste grande oceano teria conduzido à deposição da espessa sequência de rochas sedimentares que representam as unidades que vão desde o Pérmico à era Cenozóica, incluindo basaltos antigos que, repete-se, eram aceites como precipitados. A esta vasta sequência, na óptica de então, sucederam-se depósitos de aluvião, limitados às poucas e pequenas áreas consideradas emersas em consequência da referida descida das águas. Finalmente, as lavas e os tufos das Vulkanische Gestein, as únicas rochas que ficavam de fora do modelo neptunista, eram interpretadas, de facto e bem, como produtos vomitados pelos vulcões, um conhecimento, na altura, pouco acessível aos habitantes do centro e norte da Europa (incluindo os cientistas), mas, pelo contrário, bem vivido pelas populações mediterrâneas, de há muito familiarizadas com este fenómeno geológico.

Era inegável a génese não marinha destas lavas e destes piroclastos, evidências de origem vulcânica bem conhecidas e descritas por homens ilustres como Plínio, no início do 1º milénio, ou por Agricola, no século XVI. Todavia, para os neptunistas, este vulcanismo, que não podiam negar, resultava da fusão de outras rochas em regiões onde tivesse lugar a combustão de camadas subjacentes de carvão ou de betume, uma concepção errónea vinda da Antiguidade, expressa, por exemplo, no citado poema latino, Aetna, e reforçada pelo facto de já então serem conhecidas na Europa importantes minas de carvão-de-pedra. Entre quem assim pensava, contava-se o francês Étienne Guettard (1715-1786) que, todavia, teve o mérito de reconhecer a existência de vulcanismo, embora extinto, na região dos Puys, no Maciço Central francês (Auvergne). Tendo sido um neptunista convicto, Guettard tornou-se, assim, um dos primeiros defensores da então recente teoria vulcanista.

Um dos críticos mais intransigentes das ideias neptunistas de Werner foi o italiano e contemporâneo Scipio Breislak, que perguntava com alguma ironia, onde se havia escondido toda a água desse imenso oceano e afirmava que, por muito grande que fosse, este oceano não poderia ter contido em suspensão todos os constituintes das rochas da crosta.

Surgiu então uma das mais notáveis polémicas no domínio das geociências. Aos neptunistas, centrados na escola alemã de Freiberga e, por isso, também chamados wernerianos, opunham-se os vulcanistas contemporâneos, com particular relevo para os geólogos italianos e franceses, com toda a experiência que tinham do vulcanismo actual e activo no Mediterrâneo, no caso dos primeiros, e do vulcanismo relativamente recente, do Miocénico inferior (20 Ma) ao Quaternário, embora extinto mas ainda evidente no dito Maciço Central, no caso dos segundos.
(continua)

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