quinta-feira, 14 de outubro de 2010

POSTAL DE WAGENINGEN. ENTRE A HISTÓRIA E O AFECTO

POSTAL DE WAGENINGEN. ENTRE A HISTÓRIA E O AFECTO

via Justino Pinto de Andrade by Justino on 9/29/10

1. Envio-vos este "postal" a partir de um dos países mais antigos e mais simbólicos da Europa – um país de que se conhecem vestígios humanos há, pelo menos, 100.000 anos. Estou por alguns dias nos Países Baixos, incorrectamente chamados Holanda, pois as "Holandas" são apenas duas das suas doze Províncias, a Holanda do Norte e a do Sul. Ler mais

2. Para nós, angolanos, o nome Holanda traz-nos, de imediato, à memória o futebol. Ainda há pouco tempo a selecção holandesa deliciou-nos com maravilhosas exibições, na Copa do Mundo 2010 que teve lugar na África do Sul. Depois, foi batida, in extermis, pela Espanha, com um golo de grande oportunidade marcado por esse fabuloso jogador espanhol que se chama Iniesta. A Holanda, que esteve durante oito séculos sob domínio espanhol viu, assim, fugir-lhe das mãos mais uma oportunidade de se sagrar Campeã do Mundo de Futebol, precisamente pela sua antiga (e remota) potência colonial. Imagino-lhes a raiva…

3. Daqui onde estou, e donde vos envio este "postal", recordo nomes que deram muitas glórias desportivas à Holanda como, por exemplo, em 1974, a sua selecção, então treinada por Rinus Mitchels, e que ficou mundialmente conhecida por "A Laranja Mecânica". Vem-me à cabeça o seu jogador mais valioso, Johan Cruifff, mas, igualmente, o Neeskens ou o Johnny Rep. Na final, "A Laranja Mecânica" foi derrotada por 2-1 pela fortíssima selecção da Alemanha Ocidental, onde despontavam Franz Beckenbauer e Gerd Müller.

4. Depois, vieram outras grandes glórias como MarcoVan Basten, Ruud Gullit, Frank Rijkaard, os irmãos Frank e Ronald de Bóer, ou mesmo Donald Koemen, Patrick Kluivert, Clarence Seedorf.

5. Este é o país que deixou para a História nomes da Cultura e das Artes como Van Gogh, Rembrandt, ou os filósofos Espinoza, René Descartes e Erasmo de Roterdão. A jovem judia Anne Frank escreveu aqui o seu famoso diário, enquanto se escondia da sanha assassina dos nazis que haviam ocupado o seu país.

6. Sempre desejei pisar o solo de Anne Frank, sobretudo porque o seu drama, depois narrado em livro, foi dos episódios que mais profundamente marcou a minha memória de juventude.

7. Os Países Baixos, que nos habituámos a chamar Holanda, também tentaram colonizar Angola, em 1641. A História ensinou-nos que, estranhamente, depois de Portugal já se ter libertado do domínio espanhol, os holandeses, aproveitando-se da fragilidade ocasional de Portugal, iniciaram a ocupação de algumas das suas colónias. Fizeram-no no Nordeste Brasileiro, no Litoral Angolano, nos domínios portugueses na Ásia.

8. Os holandeses eram, então, a maior potência marítima do mundo e estavam em fase de expansão económica. Um país reduzido, mas com uma tremenda vontade imperial… Penso que essa vontade imperial lhes vinha dos tempos de Carlos Magno e também da longa ocupação espanhola.

9. Angola entrou na História da Holanda e a Holanda entrou na História de Angola, não só pela ocupação temporária de Luanda mas também pela astúcia política e diplomática da nossa célebre Rainha Ginga. A Rainha Ginga alternou alianças para reforçar o seu poder e enfraquecer as forças ocupantes. Prometeu aos holandeses que repartiria consigo os escravos capturados, subtraindo, assim, aos portugueses a força de trabalho que necessitavam para explorar o Brasil.

10. É, pois, desta Holanda que também faz parte da nossa História, que vos envio este singelo "postal de viagem". Eles deixaram, entre nós, visíveis vestígios de sangue, como se pode ver por alguns nomes de famílias angolanas, como os Van-Dúnem, os Van-Deste, ou os Von-Haff.

11. Vem-me agora à memória uma coisa que julgo interessante e que quero partilhar com vocês. Há muitos anos, alguém me disse que a Armada do luso-brasileiro Salvador Correia de Sá e Benevides, partida de Pernambuco para retomar Luanda das mãos dos holandeses, conseguiu o seu intento praticamente sem ter disparado um tiro… Caminhando do Sul para Luanda, estacionaram no Litoral da Província do Kwanza-Sul – creio que defronte ao Kikombo ou a Porto Amboim. Aconteceu, porém, um fenómeno marítimo, um maremoto (que hoje nos habituámos a chamar Tsunami), que fez afundar muitos dos navios da Armada, entre os quais o Navio-Almirante. Refeitos do susto, os sobreviventes, capitaneados por Salvador Correia de Sá, encaminharam-se mesmo assim para Luanda, para cumprirem a missão que se propunham.

12. Os holandeses, resguardados e entrincheirados na Fortaleza, divisaram alguns, poucos, navios a aproximarem-se. Faltava o Navio-Almirante. O que fez com que os holandeses tomassem aquela pequena frota como sendo apenas uma pequena parte da enorme Armada que os vinha atacar… Se o Navio-Almirante ainda não tinha chegado, é porque, então, o grosso da tropa vinha com ele… Calculada assim a hipotética correlação de forças, os holandeses terão decidido retirar para mais longe, sem oferecer resistência em Luanda…

13. Salvador Correia de Sá terá, pois, alcançado o objectivo que se propunha, sem grande esforço. Os holandeses "bazaram" tendo-se restabelecido o comércio de escravos que alimentava a economia brasileira e fazia rico o Reino de Portugal.

14. Esta é apenas uma versão da história da retomada de Luanda. Não digo que seja a verdade histórica.

15. Já vos disse tantas coisas neste "postal" que vos envio, e esqueci-me de vos dizer ao que vim…

16. Na realidade, estou aqui em Wageningen, uma cidade holandesa, pequena mas linda. Muito simbólica pela ensino que ministra. Vejam, por exemplo, que dos menos de 40.000 habitantes que possui, cerca de 10.000 são estudantes. Possui uma Universidade de muita qualidade, cujos cursos são tomados como exemplares em todo o mundo, muito em especial, na Europa. Só a fazerem Doutoramentos estão mais de mil estudantes. Aqui há estudantes de 100 países. Não me enganei – são, sim, 100 países. É, como se dizia na minha infância, uma autêntica Babilónia…

17. Vim participar numa Conferência, patrocinada pela Wageningen University. Estou aqui juntamente com mais dois angolanos: o Professor Nuno Vidal, que veio pela Universidade de Coimbra e a Doutora Maliana Serrano, da Wageningen University. Somos os únicos angolanos aqui. Longe da nossa terra, mas com ela sempre no coração. Por isso, vos envio este "postal", colocado entre a História e o afecto…

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