"- Hoje sente-se indiano?
- Não, indiano não, mas às vezes sinto-me goês...
- E português?
- Isso já não sei. O que é um português?"
José Eduardo Agualusa, Um Estranho em Goa (2000: 50)
"'We are all dead, haven't you realized that yet? I am dead, and this city is dead, and the battles, the sweat, the blood, the glory and my power, all dead, all utterly in vain.' 'No,' I said, 'there is always something that survives.'" Os textos que abordo refletem a ideia de enredamento necessária ao diálogo humano, o que fica das relações hifenadas lusas, e neste contexto, asiáticas. As propostas das diferentes leituras reelaboram os conceitos de inferno e de paraíso, sendo que o signo linguístico "inferno" é o mais questionado na sua componente significativa. O inferno linguístico suscita, afinal, um exercício de reflexão para que o leitor descubra outros infernos mais profundos. Então, o inferno nem sempre é espaço de perdição, é-o também de libertação, de busca em direção ao futuro, de criatividade e de vida. As entidades que não o assumem ficam a viver numa espécie de purgatório, onde o presente é vivido por referência a um passado glorioso, sempre melhor do que o tempo do agora, sem perspetiva de futuro. Sendo que passado e futuro são fundamentais para a recriação de um Oriente presente da responsabilidade de autores a ocidente. O narrador-autor dá início a um percurso tentativo e angustiante de compreensão daquela realidade. O título escolhido, Um Estranho em Goa, tem no nome-adjetivo "estranho" a sua pista encoberta. Um estranho pode ser alguém que penetra num espaço e que não é reconhecido pelos que aí estão como sendo um local, mas sentir-se estranho é também o estado de espírito desse alguém que circula num espaço que não é o seu, com o qual pode até ter afinidades, ou não; e que se sente exterior a esse lugar. Um estranho pode então ser um estrangeiro do ponto de vista nacional ou cultural, ou pode ser um meio estrangeiro, quaisquer que que sejam as combinações possíveis. E o nosso narrador sente-se descontextualizado ao longo do seu percurso narrativo. Inicialmente incomodado, chega mesmo a vivenciar momentos de angústia. A natureza circundante parece ser o elemento catalizador do mal estar. Na verdade, o clima não recebe bem os que visitam aquela região, pelo que o narrador-autor — um angolano e ocidental — enceta a aventura asiática sempre perseguido pela natureza; um certo clima, uma certa flora e uma certa fauna. Do exterior, é possível caminhar na direção do espaço interior de um narrador atraído por personagens ou realidades proibidas, tais como: Lili, Lailah, K, Plácido Domingo, os livros, a santidade de São Francisco Xavier, a serpente. Por outro lado, graças a essa opção desafiadora, este narrador no final poder-se-á libertar, voando até ao infinito, onde encontra uma natureza que pela primeira vez se alegra, porque é a do retorno a uma certa Europa: "E então sem aviso, irrompeu no meio das nuvens o brusco esplendor dos Alpes. Uma ilha de gelo, no meio de um infinito mar de espuma, que o sol da madrugada tingia de vermelho [...] Encostei a cabeça à janela e chorei" (165). E quando já se encontrar bem no alto, abafado pelo ruído do motor do avião — de uma forma sugerida pelo nome e não afirmada pelo verbo — acabará por fazer a interligação das epígrafes com a enumeração de nomes para o demónio, num processo de reconstrução de um demónio linguístico tão presente na Língua Portuguesa. A prosa de Agualusa é uma escrita plástica no que concerne a descrição da natureza e a interação do narrador-autor com o meio ambiente. As frases iniciais do primeiro capítulo transmitem-nos a textura áspera, através da sequência aliterativa em [r] e [R]: "As gralhas, lá fora, gralham umas com as outras. Arranham a noite numa algazarra áspera" (11). Assim traduz o incómodo e desconforto do narrador, em sintonia com a tensão de uma noite que, apesar de estrelada, não clarifica a alma. E a angústia cresce ao ponto de ele se questionar acerca da razão da sua estada ali. Finalmente, a confissão lúcida: "Escrevo porque quero saber o fim" (13). Essa sua curiosidade vai constituir-se como fio condutor das etapas narrativas, na interação deste protagonista da escrita com as personagens que faz entrar em cena. A sua vocação para o conhecimento quase o faz cair no esquema de tráfico de órgãos, ao concordar em comprar o coração de São Francisco Xavier; situação inverosímil que revela uma sua faceta de ingénuo. É como se a ingenuidade constituisse uma condição essencial para o acontecer de uma epifania, mesmo que impossível. A noite de Agualusa partilha com a do Indian Nocturne de Antonio Tabucchi o mesmo cenário e a mesma necessidade de procura de algo ou de alguém; no fundo, a procura de si mesmo. Tabucchi, de uma geração anterior à de Agualusa, cria um protagonista-autor numa viagem de busca por um tal Xavier Janata Pinto que acaba por se identificar com o narrador no final da obra, num desvendar tão característico dos finais narrativos do universo tabucchiano. Ao protagonista é atribuido um nome de pássaro — Roux, Rouxinol, Nightinghale — pássaro traduzido. Pássaro simbólico na poesia europeia, o rouxinol é a ave inspiradora da poesia, pelo seu canto sedutor. Este rouxinol inspirado, à procura do seu projecto literário nesse Oriente dos mil e um encontros plurais, decide enveredar por dois passados coloniais europeus tão fortes na definição da Índia e do Ocidente europeu. Na Bombaim, cedida aos ingleses por Portugal, encontra o saudosismo britânico. Em Goa, convive com o passado histórico luso. E nisto o texto de Tabucchi difere do de Agualusa, é o texto de um estrangeiro na Índia, não o de um estranho; confessa-o o narrador Tacbucchi: No entanto, a escrita dos ambientes geográficos e humanos do nocturno de Tabucchi apresenta traços semelhantes aos da prosa de Agualusa. A inquietação curiosa do protagonista de Tabucchi orienta-o na direção da noite, onde começa por descobrir uma natureza agressiva em relação aos seres humanos, uma natureza que domina os homens ou quase o consegue. Quer estejamos face a lugares infestados de doença e Sujidade, quer sigamos o protagonista na sua permanência no hotel de luxo Taj Mahal, a ideia é a mesma. O hospital de Bombaim surge como um local de aspeto melancólico, invadido por uma natureza agressiva e auto-suficiente, porque larvar: "The floor was black with cockroaches which burst under our shoes (…). 'We kill them off,' said the doctor, 'but after a month they're back. The walls are impregnated with larvae, you'd have to knock down the hospital'" (16-17). O hotel de tradições britânicas apresenta-se como uma fortaleza ilhada que resiste à natureza. Defende-se contra o ciclo da vida representado pelos corvos que debicam os cadáveres humanos, assim como os ratos, os insectos e a má qualidade dos sistemas de saneamento básico, porque "the Taj is not a hotel: with it's eight hundred rooms it is a city within a city!" (22).
(cont...)
Irene de Amaral, University of Masscachusetts Dartmouth
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