quinta-feira, 2 de abril de 2009

Tarefa tão íntima em mão anónima

via O que eu andei ... de João B. Serra em 02/04/09

Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Nzdima emitiu as maiores suspeitas:
- E vai ficar em cada de quem?
- Fico no hotel, avó.
- Hotel? Mas é casa de quem?

Explicar como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?
- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei para a tranquilizar.
Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com o meu orgulho. E franziu a voz:
- E, lá, quem te faz o prato?
- Um cozinheiro, avó.
- Como se chama esse cozinheiro?

Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegura a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de quem nem o rosto se conhece.
- Cozinhar não é um serviço, meu neto - disse ela - Cozinhar é um modo de amar os outros.

Mia Couto,
O Fio das Missangas. Contos.3ª ed. Lisboa, Caminho, 2004. p. 127-128

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