domingo, 17 de maio de 2009

SENHOR ENGENHEIRO

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 17/05/09
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- Ser engenheiro em Portugal é ser cidadão de primeira -, dizia um velho amigo meu, com anos e anos de trabalho de campo, nos saudosos Serviços Geológicos de Portugal, calcorreando montes e vales, umas vezes pela torreira dos estios, outras, por entre chuva, lama, e geadas de engadanhar pés e mãos, longe dos cómodos do lar, onde vinha aos fins de semana para estar com mulher e filhos e mudar de roupa.
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- É vê-los na política, nos conselhos de administração e em tudo o que são bons tachos -, dizia e continuava a desabafar. - Até num serviço como o meu, em que a geologia foi e continua a ser a razão de ser da sua existência, quem é que decide e manda? É um geólogo? Não! É um engenheiro, claro!
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Não é difícil perceber que esta era a razão principal daquela "pedra no sapato" do meu amigo geólogo, não só de profissão, mas também de coração, face à classe dos engenheiros. Nada que se compare com o tempo de permanência no terreno cumprido por este meu colega, também eu somei dias, semanas e meses de trabalho de campo, nos fins-de-semana e férias de anos e anos de docência. Numa destas andanças, fui protagonista de um episódio que dava razão a este meu amigo. Um belo dia, nos anos 70, andava eu entre a Vidigueira e Marmelar, de martelo na mão e uma bússola de geólogo pendurada ao pescoço, marcando, na Carta Militar 1:25 000, a natureza dos terrenos que ia reconhecendo, quando um pastor, acomodado à sombra de um sobreiro, curioso de me ver por ali naqueles preparos, meteu conversa comigo na sequência do «boa tarde» que lhe dirigi.
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- Então o senhor engenheiro aguenta este sol, sem chapéu na cabeça?
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Conversa puxa conversa e o homem sempre a tratar-me por engenheiro, até que resolvi dizer-lhe:
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- Olhe, amigo, não me trate por engenheiro, que é coisa que não sou. Engenheiros são esses fulanos que andam aí a marcar os pontos para as estradas e para os postes das linhas de alta tensão.
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A esta resposta, que não esperava, o pastor mirou-me de alto a baixo, intrigado.
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- Então, vossemecê não é engenheiro? Estão, não é nada? Tem de ser qualquer coisa que eu não estou a ver o que seja, - disse, por fim, como que a solicitar-me que lhe satisfizesse a curiosidade.
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Expliquei-lhe, então, o que fazia. Falei-lhe do terreno areento que tínhamos debaixo dos pés, do barro que havia bem perto dali e que se tornava lama pegadiça no Inverno, dos seixos, bem visíveis e abundantes à superfície do solo, semelhantes aqueles que se viam lá em baixo, na ribeira. Expliquei-lhe o porquê dessa semelhança e acrescentei:
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- As pessoas que, como eu, trabalham no campo, a ver e a estudar as rochas, chamam-se geólogos. Assim como há médicos e advogados, há geólogos. É uma profissão como outra qualquer.
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- Sim senhor -, respondeu, - agora já entendi.
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A sombra do Quercus era agradável e convidava à conversa. O badalar de um ou outro chocalho era relaxante e relaxante era também o rafeiro, sonolento, estendido ali ao lado. Sentado no chão e encostado a uma cortiça de nove anos, pronta a arrancar, ali fiquei com ele à conversa até à hora a que o Land Rover me aguardava no sítio combinado da estrada, pondo fim a mais um dia de trabalho de campo.

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