segunda-feira, 12 de julho de 2010

A gênese de Os Donos do Poder

A gênese de Os Donos do Poder

via Lusofonia Horizontal by Daniel on 7/8/10

Tanscrevo algumas passagens interessantes da ótima entrevista de Raymundo Faoro a Marcelo Coelho, da Folha de S. Paulo, em maio de 2000, sobre o percurso intelectual de um dos maiores intérpretes da formação político-jurídica do Brasil (e não só).


Coelho: O contato com a cultura jurídica talvez tenha sido uma vacina contra o oficialismo dominante.

Faoro: Há coisas formais que hoje, estão mudando, mas deveriam mudar totalmente. Por que aquele formulário, o "data venia", o sistema de raciocinar que é o mesmo desde Quintiliano, a indrodução, a explicação, a prova, a retutação, a conclusão? É o mesmo clichê, a mesma prosa que, como advogado, nunca segui. Sempre procurei escrever como um cidadão, sem jargão jurídico. Aliás, só escrevi a segunda edição de Os Donos do Poder porque ninguém tinha entendido a primeira. Ler mais

Coelho: O sr. leu Weber em alemão?

Faoro: Não, naquela época não lia alemão. Aprendi o francês na faculdade, depois aprendi inglês, mas não falava. Hoje falo alguma coisa. Aprendi o alemão depois, mas hoje não tenho fluência, salvo nos textos sociológicos. Tentei ler O Tambor, de Günter Grass, em alemão, mas é um dialeto da antiga Dantzig, fiquei desnorteado. Meu alemão não dá mais para isso. O inglês tomou conta, e eles traduzem bem, ao contrário dos franceses, que só traduziram a primeira parte de Economia e Sociedade de Weber. E os mexicanos fizeram muito ao traduzir Weber. Agora vou dar uma de Gilberto Freyre.

Coelho: Como assim?

Faoro: A ideia de patrimonialismo, usada por Octavio Paz: comecei a falar antes dele sobre isso. Talvez nossa fonte tenha sido comum: comecei a achar a sociedade ibérica patrimonialista, como depois os mexicanos começaram a achar também.

Coelho: Teve contato com Gilberto Freyre?

Faoro: Sim, dentro da vaidade tremenda dele... O interessante é que a vaidade dele não era agressiva. Ele me dizia, sobre Os Donos do Poder: "Um de nós dois vai destruir o outro, e eu aposto que você vai desaparecer".

Coelho: Quando ele disse isso?

Faoro: Isso foi em 1973, antes da segunda edição do livro.

Coelho: No momento da primeira edição, como foi recebido o livro?

Faoro: Nelson Werneck Sodré só faltou me chamar de filho da puta. Outro, mais delicado, foi o Wilson Martins, repudiando tudo o que eu escrevi. Gilberto Freyre escreveu sobre o livro também. Disse que minha tese teria validade, mas que a parte sobre o começo da colonização não tinha pertinência.

Coelho: O sr. não chegou a debater com eles?

Faoro: Tinha muita timidez em discutir com essa gente. Depois passei a conhecer o Gilberto Freyre, ele me oferecia o famoso licor que fazia todo mundo ficar com dor de cabeça...

Coelho: Mas, com relação a essa oposição que ele enunciou, Os Donos do Poder versus Casa Grande & Senzala, qual a sua avaliação?

Faoro: O contraste não é válido. Freyre escreveu sobre o Brasil do século 16, sobre uma área para onde vinha gente nobilitada ou rica. Não foi o caso do resto do Brasil. No Nordeste, construía-se uma autarquia, um "oikos". Mas sua visão sobre o patriarcalismo já vinha superada de Portugal. Nunca perdi de vista que o Brasil foi colônia. A produção era para exportação, e o exportador é o dono do negócio - o comissário, o comerciante...

Coelho: O sr. começou a interpretar o Brasil a partir do que acontecia no Império.

Faoro: E se dizia, sobre aquela época, que o senhor de escravos era conservador. Dei uma virada nessa interpretação, que ficou. O conservador lida com a riqueza mobiliária, não com a terra. Ousei, fazer, então a ligação de patrimonialismo com estamento, o que não é weberiano.

Coelho: Em tese, a divisão da sociedade em estamentos seria uma estratificação social relativa ao feudalismo etc., coisa que não existia no Brasil. O sr. começou a ler Weber na faculdade?

Faoro: Sim. Quando vi na livraria aqueles quatro volumes, não tinha ideia de quem era. Depois um exilado espanho, a quem perguntei sobre aquele autor que me parecia esquisito, me disse: "Mas esse é o grande sociólogo do mundo moderno!".

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