quarta-feira, 14 de julho de 2010

MESTRE JOÃO COXO

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 7/11/10

Fotografia de Pedro Tavares, no BLOG OLHARES, 2009
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QUANDO, NO ALENTEJO, se dizia sopas de carne, queria, sobretudo, acentuar-se que não eram de peixe nem de azeite. Nesse tempo, nos montes e nas aldeias, carne fresca só a de porco, nos meses da matança, em geral, pelo inverno, ou a de borrego, pela Páscoa. Frangos e galinhas quase todos tinham no quintal ou em liberdade, no campo, em redor da casa, e lá se matava um destes animais em dia de festa ou como dieta de gente acamada. Ler mais
Talho, só na cidade. Quem tivesse posses para tal, podia levar para casa um naco de vaca ou de outra carne fresca para um cozido, um guisado ou um assado mais bem guarnecido. Nesta condição de vida, carne era a dos enchidos e a da salgadeira, quase sempre só o toucinho, frutos de soluções habilidosas de conservar, vindas de tempos antigos. Assim, quando um rapaz perguntava à mãe o que era o jantar e esta lhe respondia, simplesmente, «sopas de carne», já se sabia que o conduto era o do costume.

Simples de fazer, pouco mais eram do que uma aguada gordurosa e quente para molhar o pão. Fazendo as vezes do cozido, juntava-se-lhes o que se podia de entre umas batatas e o que mais se arranjasse de hortaliças. Às vezes, lá ia uma mão cheia de grão, previamente demolhado, e outra de massa. Punha-se o pão migado no fundo da tigela, com um raminho de hortelã e regava-se com o caldo a ferver. O toucinho, o chouriço ou a linguiça comiam-se depois com navalha e mais um naco de pão. Muitas vezes guardava-se o toucinho cozido para, na manhã seguinte, barrar o pão e comer com o café.

Sopas destas vi-as fazer e comi-as, há muitos anos, na oficina de ferrador do mestre João Coxo, assim alcunhado devido a um coice que levara de uma mula manhosa. Guardei na memória a sua arte de encurvar o ferro ao rubro e dar acabamento às ferraduras e de as vazar nos sítios onde depois se enfiavam os cravos que também ele fazia, a quente, com meia dúzia de hábeis marteladas. Tenho nos ouvidos os golpes sonoros do martelo na bigorna, em contraste com o som brando e abafado do malhar do ferro incandescente e maleável, som que se ia mudando para cantante, à medida que se lhe apagava o rubor, logo seguido do inconfundível chiar fumegante, ao ser mergulhado na água da celha, ali ao lado. Ligada à mesma chaminé, que extraía os fumos amarelo-sulfurosos da hulha em brasa viva, a faulhar soprada pelo fole, o Coxo improvisara, na mesma forja em que amolecia o ferro, uma pequena fornalha onde sempre cozinhava a refeição do meio-dia. A lenha miúda e, as mais das vezes, os sarrafos de pinho resinoso que ali queimava haviam capeado a panelinha de barro com um verniz negro de carvão que todos os dias engrossava com a gordura que sempre transbordava da fervura.

– Cheira bem, mestre João – não pude deixar de comentar, quando, um dia, na companhia do Rodrigo, o carreiro da mercearia do Anselmo, lhe levei a ferrar o Pataludo.

Na fornalha, a espuma gordurosa rompia sob o texto em goladas intermitentes e escorria sobre um dos lados da panelinha, indo chiar sobre o brasido.

– São sopas de carne – disse, num jeito de quem agradece o elogio. – Têm um naco de toucinho e meia linguiça. Vão aí cozendo. Daqui em nada meto-lhe umas batatitas e mais isto que trouxe ali da venda do tio Zezinho, - precisou, abrindo um talego de onde tirou uma cabeça de nabo, uma mancheínha de vagens de feijão carrapato e um pedaço de abóbora bacoreira. – Não lhe ponho grão, que nunca mais se dá cozido. Depois é só migar as sopas, ir buscar um raminho de hortelã ali ao quintal, ao pé do poço, e comê-las. Bom, vamos mas é lá a isto. – Interrompeu – Traz para aqui o cavalo.

Nesse dia, e a meu pedido, era eu que ia ajudar à mudança das ferraduras do Pataludo, já gastas nas pedras da calçada, no vaivém diário da cidade, a receber e a distribuir carradas.

– Alça – ordenou o Rodrigo tocando-lhe numa das patas, ao que o grande percheron obedeceu, de imediato, levantando a mão respectiva que deixou, confiante, entre as minhas, bem apoiadas num joelho.

Colocando a ferramenta no chão, o Coxo ajeitava o grosso avental de couro e escolhia os tamanhos das ferraduras. Não esqueço o deslizar do formão a desbastar a base do casco como quem corta sabão, nem o som macio do martelar dos cravos, entrando, fofos, na quitina, bem orientados para que ressurgissem um pouco mais acima, onde os dobrava para fora e os cortava, em estalidos secos, com a enorme turquês, dando a tudo acabamento de mestre, limando onde houvesse imperfeição.

– Faz lá tu – ordenou-me quando faltava ferrar a última pata. – Aponta o cravo para fora, senão vais espetá-lo na carne do animal. Isso mesmo, assim. Não tenhas medo que ele aí não sente nada.

Findo o trabalho e quando veio de novo cá fora para dar o troco ao Rodrigo, o mestre João, atirou-me, num convite que não era só de mera cortesia:

– Queres ficar para o almoço? Há ali que chegue para os dois. Só tenho uma tigela, mas há aí mais colheres. E tenho melão fresquinho para assentar. – Insistiu.

1 comentário:

Nadinha disse...

Gostei. Muito interessante!