Os camaradas angolanos que tive na minha companhia, durante a minha comissão militar, eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia. Ler mais
Isto que acabo de escrever não é retórica. Encontrando-se na mesma situação que nós, de ter que fazer uma guerra que não queriam nem desejavam, no cumprimento do serviço militar obrigatório, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível. Eles travaram os mesmos combates que nós. Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós. Eles enfrentaram as mesmas minas que nós. Eles contornaram as mesmas "bocas-de-lobo" que nós. Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós. Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós. Eles tremeram os mesmos medos que nós. Eles riram as mesmas alegrias que nós. Eles choraram as mesmas saudades que nós. Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós. Eles foram nós. Todos fomos nós.
À medida que o serviço militar ia decorrendo, os nossos camaradas angolanos iam sendo cada vez menos os jovens assustados dos primeiros tempos, para se tornarem homens de caráter, responsáveis e adultos, que nunca viravam a cara ao perigo e sempre agiam de acordo com a sua consciência (à imagem e semelhança do que acontecia com os seus camaradas portugueses, é muito importante que se diga isto). Ansiavam pelo momento em que, quando acabassem a tropa e regressassem à condição civil, pudessem finalmente construir as suas vidas, isto é, pudessem casar-se, constituir família e arranjar um emprego minimamente estável e razoavelmente remunerado, tanto quanto era possível a africanos vivendo na Angola colonial.
Subitamente, a um par de meses do fim previsto para o nosso serviço militar, deu-se a Revolução do 25 de Abril, à qual manifestei o meu apoio na minha condição de alferes miliciano. A Revolução abriu novos horizontes e gerou novas esperanças no coração de todos, angolanos e portugueses, eu incluído. A partir dessa data, os nossos camaradas angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado.
Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que tinham tido até então, uma vida sem humilhações e sem pobreza.
Quando no fim do serviço militar nos separámos, as nossas vidas — as dos portugueses por um lado e as dos angolanos por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto nós, os portugueses, pudemos recomeçar as nossas vidas (melhor ou pior, consoante a condição psíquica e física em que ficámos) num Portugal em paz, os nossos camaradas angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e nós tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.
Não sei quantos dos meus camaradas angolanos voltaram então a pegar em armas. Sei apenas que pelo menos um deles o fez, alistando-se nas FAPLA quando Angola foi invadida pelo exército sul-africano. Acabou por morrer em 1982, perto do Huambo. Como lamento a sua morte! Apesar de pequeno em estatura, este meu camarada era um gigante na valentia. É que era mesmo!
Muitos dos nossos camaradas angolanos eram oriundos do Huambo, do Kuito, de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes nossos camaradas apanharam em cheio com um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas e sabe-se lá que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que a seguir ao 25 de Abril esses nossos camaradas tinham alimentado foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.
De maneira nenhuma eu desejo diminuir o valor dos meus camaradas portugueses, que em tudo era igual ao dos angolanos, sem qualquer sombra de dúvida. Não é disso que se trata. O que apenas pretendo fazer é prestar uma homenagem muito sincera, ainda que canhestra, a pessoas que tive o enorme privilégio de conhecer, cheias de humanidade, de sensibilidade e de coragem, que me deram extraordinárias lições de vida e que eram as últimas pessoas no mundo a merecer a sorte que o destino lhes tinha reservado: os meus antigos camaradas de armas angolanos. Faço-o com nó na garganta.
Fonte: Blogue "A Matéria do Tempo", post de 06Dez2012.
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