via ANGOLA DO OUTRO LADO DO TEMPO... by MARIANJARDIM on 5/5/10
(continuação)
A Sociedade
Havia 1.000 a 2.000 brancos de diversas origens, (32) quase todos na costa, principalmente em Luanda. «A consciência de raça, presente desde os primeiros contactos portugueses, reflectia-se nos censos, que dividiam a população segundo a cor da pele», (33) sendo «a esmagadora maioria... preta e livre», mas incluindo grande percentagem de mulheres; seguia-se-lhe «cerca de 3.000 mestiços, rotulados, no vocabulário colonial da época, (34) como pardos, mulatos ou filhos do país». A maior parte dos negros e mestiços vivia nos distritos de Ambaca, Pungo Andongo e Caconda. A presença portuguesa na província [antes da delimitação da futura colónia na década de 1880] apoiava-se nas vantagens económicas que os chefes tradicionais viam nela [e portanto na estrutura administrativa que funcionou durante a escravatura] e na cooperação entre os três elementos: a gestão de Luanda, a economia da população afro-portuguesa, os interesses dos chefes tribais.
Luanda: as características comuns dos membros do oficialato do governo do território e das firmas de capital externo da praça da capital eram a) serem brancos e b) constituídos mormente por residentes temporários; formavam duas camadas sociais, uma mais baixa onde estavam os empregados de firmas do Rio e de Lisboa, que se ausentariam por doença ou «logo que as suas fortunas o permitissem», (35) mas também degredados [e por isso, segundo Dias] «a comunidade branca da colónia estava marcada pelo estigma da criminalidade», (36) e uma camada mais rica, «elite social da colónia», de comerciantes e oficiais do Exército e da Marinha: estes, quando nas guarnições dos presídios, desempenhavam funções civis administrativas (municipais, judiciais) e técnicas (agrícolas, de engenharia).
Os afro-portugueses: as famílias angolanas mais antigas, que «monopolizaram, até à década de 1880, grande parte dos cargos militares e administrativos do interior da colónia» eram as dos Matoso de Andrade, dos Pinheiro Falcão, dos Velasco Galiano e dos Pereira dos Santos van Dunen, «haviam acumulado e consolidado esse património ao longo de várias gerações, com dotes e legados, através de estratégias e alianças matrimoniais» e da obtenção de «nomeações como capitães-mores dos distritos do interior» por ocasião das «guerras contra as sociedades africanas do hinterland...» (37) No interior de Angola, estas «oligarquias afro-portuguesas... interligadas... de ascendência já predominantemente negra, tais como os Pereira Bravo, de Golungo Alto, ou os Fragoso dos Santos e os Mendes Machado, de Ambaca, afirmavam o seu poder e a sua identidade, face à população africana "gentia" circundante, através de espessas redes de parentesco e clientela, que ultrapassavam as fronteiras da colónia»: em 1850 Manuel da Conceição Mendes Machado tinha influência sobre «grande parte» das autoridades tradicionais entre Ambaca e Cassanje, e dos concelhos limítrofes de Pungo Andongo e Massangano. (38) As mulheres de origem africana tinham «posição de relevo a todos os níveis económicos e sociais» de Luanda e Benguela, por ex. D. Ana Joaquina dos Santos Silva (39) e D. Ana Francisca Ferreira Ubertaly, esta «nascida no interior de África e trazida como escrava para Luanda» (40) viúva de Carlos Ubertaly, (41) que deixou uma fortuna de 26.000 contos de reis quando faleceu em 1848; as negras teriam ainda a influência [comum a todas as mães] conferida pelo «ensino das crianças em quimbundo», o idioma dominante em Luanda e Benguela em princípios do século XIX, contribuindo assim «para a formação de culturas sincréticas, (42) tendência fortalecida pela escassez de mulheres europeias entre a população da colónia.»
Os sobados (Dias p. 356): no território sob administração portuguesa pertenciam à coroa [era crown lands, para usar o termo inglês] por direito de conquista e comprometiam-se pelo undamento «a observar a fé cristã... [a pagar o] dízimo e ao fornecimento de mão-de-obra para o comércio, a guerra... em troca do reconhecimento português da sua legitimidade...» As estruturas internas do poder tradicional haviam-se alterado desde a Conquista pela tomada do poder e legitimação no século XIX [não muito antes?] de famílias dominantes dos sobados e ligadas à «colaboração com os Portugueses». As aldeias eram consideradas livres nas «fontes coloniais», embora [?] sujeitas aos sobas e não se distinguindo naqueles «as diferentes categorias de parentes, clientes e escravos de que se compunham...»
Moradores: gente criada no ensino da língua portuguesa, formando «núcleos... diferenciados, social e culturalmente, da massa da população rural...» que, segundo Dias, exploravam económica e manipulavam politicamente: especialmente a partir de 1830, quando as reformas administrativas e militares – novas divisões distritais e formação de companhias móveis de 2ª linha – criaram «novas bases legítimas para o exercício desse poder arbitrário.» Negros emancipados, i. é, que não estavam sujeitos a qualquer soba, eram pessoas livres que se vestiam à europeia e viviam nas vilas do litoral, onde a cultura europeia mais se fazia sentir; classificavam-se como moradores, descrição dada também a brancos e mestiços que moravam em povoações essencialmente de cultura banta do interior.
Comerciantes: mesmo depois de 1830 «a esmagadora maioria dos negociantes de Luanda continuava ligada ao tráfico... [mas] o silêncio das fontes dificulta o conhecimento dos capitais envolvidos (43) ...» Haveria certamente, no entanto, capitais portugueses investidos desde a década de 1820 (44) nos negócios de ambos D. Ana Joaquina, que mantinha linhas marítimas para Montevideo, Lisboa e as principais cidades costeiras brasileiras, e Francisco António Flores, natural do Brasil mas naturalizado português, agente de uma firma do Rio; e a ambos estariam ligados comerciantes locais como o filho do país, Matos de Andrade da Câmara, e o [teatral] madeirense Arsénio Pompílio Pompeu do Carmo.
Mão-de-obra: Os carregadores «não passavam de reserva de mão-de-obra subordinada às exigências comerciais e militares da colónia...» Dias afirma [sem referir que na África de então todo o transporte era feito por carregadores – anteriormente à Conquista era feito pelas mulheres...] que se dava este nome a tod' [os varões d'] a população negra e que aos chefes de aldeia se chamava 'patrões': a condição de «carregador forçado» levava «os habitantes» a emancipar-se das aldeias. Os escravos, marcados a ferrete no braço ou no peito, podiam ser transaccionados como qualquer mercadoria (vendidos, dados ou legados, emprestados, hipotecados e herdados), e eram a base da riqueza das «oligarquias afro-portuguesas do interior e do litoral angolano»; empregavam-se [em maiores números?] na lavoura de que se abasteciam os mercados de Luanda e Benguela e os navios que ali aportavam – o que «constituía, para as mesmas famílias, outra fonte... de pressão e chantagem política sobre o governo colonial» – ou como soldados e pumbeiros, artesãos, domésticos e carregadores; sendo «esmagadoramente mulheres», constituíam 10% da população do litoral no período em apreço, já tendo formado 75% da população de Benguela na década de 1790 [quando a componente branca e a negra livre era muito menor], segundo um mapa de 15.06.1796. [Dias pensa que] a componente escrava decresceu até 1820 em consequência «de fugas» [o que, de resto e desde sempre, seria típico] de «Luanda, aberta ao sertão por todos os lados...», e «dívidas comerciais crescentes»; [e afirma, p. 354] que «... a maior parte dos escravos pertencentes às oligarquias afro-portuguesas locais gozava de elevado grau de liberdade pessoal, em termos de habitação e circulação», o que não era o caso com os dos residentes brancos: estariam entre aqueles os ladinos ['espertos'], escravos que se distinguiam numa 'arte' – carpinteiros, ferreiros, etc. – vivendo nas vilas, presídios e feiras, dependentes do trabalho gerado pelo comércio europeu [seriam, portanto, alforriados?], e aumentando «por vários milhares» o estrato social dos residentes; eram mais de 2.000 no interior do distrito de Luanda em 1820 e pelo menos 3.000 em 1861.25 Com a abolição, não era legal converterem-se os escravos em dinheiro dentro do território, deixando por isso de ter valor pecuniário.
A integração racial: o efeito deletério do clima «obrigou» a Coroa portuguesa «a seguir uma política de integração racial, (45) não só na administração da colónia como também no exército colonial», razão porque «os filhos do país tinham alcançado uma posição privilegiada (46) nas estruturas do poder colonial em Angola», dando-lhes a vantagem sobre os comerciantes da costa, que se viam obrigados a depender deles e entrar em atrito com as autoridades, que se queixavam da «promoção aberta de interesses particulares e familiares» em postos civis e militares, (47) no contexto da aristocracia local de uma «pequena minoria de famílias afro-portuguesas» descendentes dos antigos conquistadores «ou de elementos da expedição de Salvador Correia de Sá, para além de outros traficantes, militares e funcionários portugueses que residiam na colónia entre os séculos XVII e XVIII.» (48)
32. Largas margens de variação.
33. A crítica subentendida é inesperada, já que se dirige a um censo – cujo objecto, presume-se, seria precisamente o levantamento das diferentes componentes da população, com interesse administrativo.
34. Na verdade os termos eram correntes no Português em geral, e não só na 'colónia' – que ainda nem existia; o segundo corre ainda hoje e é de origem francesa.
35. Segundo o mito tão português da 'árvore das patacas' (nas áfricas ficava-se rico!).
36. Afirmação a priori, já que Dias não dá números de 'degredados', nem percentagens dos que já haviam cumprido pena e se empregavam legalmente nas actividades disponíveis na província; Dias refere o exaltado Avelino Dias, A.H.U. CG, cx. de 1823. (Os historiadores australianos não sofrem destes pruridos quanto à contribuição dos seus antepassados).
37. Os melhores comandantes militares fazem guerras contra alvos definidos, e quanto mais pequenos melhor – por exemplo um "soba alevantado" – e nunca contra "sociedades" inteiras: outra afirmação emocional. 38. Câmara dos Deputados – Ofício n.º 404 de 03.06.1856, A.H.U., Angola CG, cx. 23; GG - Ofício n.º 97 de 23.07.1863, ibid, cx. 26 e Ofício n.º 38 de 02.10.1863, cx. 32.
38. Este extenso libelo não se apoia em referências a quaisquer investigações sobre o assunto, e deve considerar-se também, portanto, um lugar comum a priori.
39. GG – Ofício n.º 93A de 04.06.1860, A.H.U. Angola cx. 26.
40. In G. Tams – Visita ás possessões portuguesas na Costa Ocidental de África, Porto 1850, vol. I, p. 215.
41. Médico italiano, degredado político em Angola, que exercia as funções de almoxarife provincial na década de 1820; o quarto e último esposo de D. Ana foi o major de 1.ª linha Luís António de Miranda, comandante do batalhão de Luanda.
42. O domínio do quimbundo como causa do sincretismo? 14. Dias, J. R. – A sociedade colonial de Angola e o liberalismo português (c. 1820-1850) in 'O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX', Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa, Lisboa 1981, vol II, p. 271
43. O que enfraquece o argumento de que aquela maioria fosse, com certeza, "esmagadora".
44. M.A. Fernandes de Oliveira – Alguns Aspectos da Administração de Angola, 1834-1851, Lisboa 1982.
45. A ideia já ocorrera a D. João II no início da colonização do arquipélago de S. Tomé e Príncipe: não se trataria de "política" mas de senso comum.
46. Se os postos tinham sido preenchidos por questão de "política" – i. é, necessidade – não seria "privilégio" ocupá-los.
47. D. Miguel António de Melo – Relatório de 25.08.1802, B.S.G.L. ser. 5, n.º 9, p. 562.
48. Referências? Sobre a opinião dos residentes portugueses relativa à africanização do meio, vide o Relatório do Governador Nicolau de Abreu Castelo Branco de 04.09.1824, A.H.U. Angola cx. 145, doc. 74, e o Relatório do barão de S.ta Comba Dão de 11.10.1830, ibid, cx. 166, doc. 33
44. M.A. Fernandes de Oliveira – Alguns Aspectos da Administração de Angola, 1834-1851, Lisboa 1982.
45. A ideia já ocorrera a D. João II no início da colonização do arquipélago de S. Tomé e Príncipe: não se trataria de "política" mas de senso comum.
46. Se os postos tinham sido preenchidos por questão de "política" – i. é, necessidade – não seria "privilégio" ocupá-los.
47. D. Miguel António de Melo – Relatório de 25.08.1802, B.S.G.L. ser. 5, n.º 9, p. 562.
48. Referências? Sobre a opinião dos residentes portugueses relativa à africanização do meio, vide o Relatório do Governador Nicolau de Abreu Castelo Branco de 04.09.1824, A.H.U. Angola cx. 145, doc. 74, e o Relatório do barão de S.ta Comba Dão de 11.10.1830, ibid, cx. 166, doc. 33
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