terça-feira, 29 de junho de 2010

Vida e Morte no Cristianismo Primitivo (parte1)

Vida e Morte no Cristianismo Primitivo (parte1)

via HISTÓRIA VIVA by Eduardo Marculino on 6/26/10
Vida e Morte no Cristianismo Primitivo
Marcos Caldas
Professor de História Antiga da Universidade Federal Fluminense
INTRODUÇÃO:
A denominação 'cristianismo primitivo' compreende o período que vai da morte de Jesus em 33[1] A.D[2] até a chamada "conversão de Constantino" (306-337)[3], ocorrida ao que parece no ano de 337 d.C. Este período pode ser dividido em três fases: a) a primeira fase está situada entre época da vida de Jesus até o ano 100, data em que a maioria dos contemporâneos de Jesus já havia falecido; b) a segunda fase vai do ano 100 ao ano de 250, no momento em que o Cristianismo se propagava fora da Palestina, principalmente nas províncias romanas mais antigas (Síria, Ásia Menor, Egito e, é claro, pela Itália, especialmente em Roma), sem, no entanto, constituir uma religião universal; e c) o terceiro momento abrange a época em que o Cristianismo foi mais intensamente perseguido pelo Estado romano (entre 250 e 311) até sua aceitação como religião do Estado imperial romano a partir de 391[4]. Ler mais

A primeira fase é marcada por uma série de disputas doutrinais, a começar pelos apóstolos companheiros de Jesus (em especial Paulo e Pedro); disputas essas menos em razão da condução das comunidades do que em razão da linha de interpretação da 'palavra' adotada; tratava-se,
pois, de responder às questões fundamentais, tais como as contribuições do Judaísmo ao advento do Cristianismo e a subseqüente transmissão da 'boa nova' para fora das fronteiras do mundo judeu. Ainda nesta época, a comunidade primitiva cristã entra em conflito direto com a autoridade judaica hierosolimita, e grande parte dos judeus passou a se distanciar do Cristianismo, recusando-o e acusando-o de ser uma seita[5]. Na segunda fase, as diferentes comunidades passam a estabelecer normas gerais, buscando um entendimento comum sobre as normas e o direitos das mesmas;
aparece com mais firmeza o credo em uma 'Lei' universal que deve ser observada em todo o cosmos[6], e em um Deus que representa o princípio da Justiça e do Amor para todos os Homens; além disso, as comunidades então estabelecidas passaram a praticar o ideal do "amor ao próximo"[7].
Não obstante, as disputas do primeiro período causaram as primeiras crises internas, produzindo movimentos intelectuais considerados divergentes da doutrina oficial (Gnosticismo, Marcionismo e Montanismo)[8] e compelindo os seguidores cristão ao reconhecimento e acolhimento em nível
institucional de uma única nova fé (regula fidei). No bojo dessas transformações, a Igreja constituiu sua hierarquia, baseada em especial na sucessão episcopal[9]. Na terceira fase, principalmente a partir do século IV, o cânon dos escritos cristãos é mais firmemente estabelecido, isto é, desde então dá-se especial relevo às questões sobre quais escritos deveriam fazer ou não parte do corpus bíblico, quais seriam ou não considerados heréticos, como se constituiria o culto e quais seriam seus verdadeiros crentes[10].
Além dessas divisões no tempo e no modo de agir, o cristianismo primitivo deve ser também distintamente considerado do ponto de vista geopolítico, isto é, devemos levar em conta a formação de duas comunidades diferentes em relação ao poder central romano: a primeira com seu berço na Palestina e posteriormente na Síria e no Egito, e a segunda em sua Igreja em Roma. Ao que parece a comunidade primitiva cristã em Roma parece ter nascido sob o signo da perseguição e da oposição ao império, enquanto na Palestina tratava-se de uma luta fundamentalmente entre cristãos e judeus. Essa divisão marcou profundamente toda trajetória da Igreja nos primeiros tempos, norteando sua composição política, social e cultural, dividida entre o mundo greco-romano e a herança vétero-testamentária judaica[11].



COTIDIANIO E IMAGINÁRIO DAS TRADIÇÕES CRISTÃS: UMA VISÃO SUMÁRIA


Dito isso, é possível então entender como grande parte da tradição "pagã" sobre o além-mundo baseava-se em uma crença típica do mundo greco-romano, todavia influente no judaísmo helenizado, cujas raízes estavam fincadas em territórios au-delà de seus nascedouros originais: a do herói[12] e de sua morte heróica permitida a poucos. Na visão dos antigos gregos, o herói era alguém com alguma qualidade extraordinária[13], a quem o divino passa a ser acessível, e a cuja morte deve-se fazer jus. Muitos caídos em guerras serão declarados heróis, embora isso não se constituía uma regra, antes uma exceção[14]; no entanto, as desventuras causadas ainda em vida aos soldados 'heróis' das cada vez mais constantes guerras do mundo greco-romano levaram a uma decadência do imaginário heróico, retirando-lhe parte de seu 'glamour', substituído ao final da República Romana, pela idéia de consolatio[15] (consolação), reconforto para a alma e, ao mesmo tempo, caminho para a verdade[16], idéia essa que se tornou cada vez mais comum[17], dentro e fora de Roma[18]. É importante frisar que até o final do primeiro milênio antes da era cristã, essas idéias habitam o imaginário de grande parte da população dos povos que viviam as margens do Mediterrâneo. Nesse sentido, a noção de uma 'vitória sobre a morte', ou dito de outra maneira, de uma ressurreição de entre os mortos (anástasis necrôn) ¢n£stasij nekrîn[19], como aparece no NT, e que tornou-se basilar na crença cristã, apresentava um vigor novo, estimulando a propagação do cristianismo em todo mundo grecoromano[20]. Intimamente ligada a essa idéia de ressurreição, aparecem nas passagens do NT as noções de julgamento (ou Juízo Final) e de recompensa aos crentes ou punição aos incrédulos[21], que variam levemente de texto a texto: em alguns casos, por exemplo, a retribuição no alémtúmulo seria pois ajustada a cada qual segundo suas obras em vida[22]; em outros, a determinação dos crimes contra Deus já é manifesta e prefixada[23]; simultaneamente ocorre nessa mesma época uma modificação importante em relação às idéias de Céu e Inferno: em vários textos do NT nota-se um alargamento dos portões do Céu para a entrada dos justos, judeus ou gregos[24]; ao mesmo tempo o submundo ou Hades[25] é transformado em um lugar de tormentos sem fim[26]. Uma outra noção, igualmente grega[27], a de ko/lpoi )Abraam (kolpoi Abraam ou 'seios de
Abraão') ganha força através da parábola do pobre Lázaro[28]. Nesse não-lugar, próximo ao Érebo, o patriarca parece observar de longe a morada dos mortos, o Hades; um espaço intransponível os separa, não apenas geográfico mas também moral, isto é, fica determinado que para alcançar a remissão dos pecados, só mesmo em vida, o que contrariaria a noção de remissão e ressurreição no final dos tempos feita pelo filho do Homem [29]. Nesse sentido, a contribuição do Apocalipse de João (ca. 95) - e da literatura escatológica dessa época de um modo geral[30] - tornou-se decisiva[31]. Nele, de modo simbólico, o apóstolo revela, entre outras coisas, o que estaria reservado aos justos e aos pecadores no além mundo [32]. É natural que a maioria desses textos provocasse horror e comoção, ao lado de representações morais e religiosas, além de procurar consolidar a realidade social e política, mas seu sentido último encontrava-se no caráter instrutivo que assumiam diante de uma realidade tão dura e muitas vezes favorável a intensas perseguições religiosas pelo poder central. Como resultado, o catálogo de penas que acompanha a maioria dessas obras constitui um importante material para compreender as punições e expiações dos pecadores no mundo dos mortos, bem como as benesses e regozijos dos justos no mundo celestial.


(Áreas da presença judaica após a diáspora).
Revista Cantareira - UFF

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