sexta-feira, 25 de junho de 2010

SARAMAGO FELIZ

SARAMAGO FELIZ

via MMC | Contingências by mmc on 6/23/10

Nenhum escritor representa um país. De resto, quanto maior ele for, menos o representa, porque a grandeza criativa vai sempre a par com a singularidade, a dissensão, a controvérsia, a solidão. Sempre, sem excepção. Um escritor representa-se a si próprio, à língua e à literatura que o fez ser. Pode projectar o seu país, como pode ser um ícone de causas ou uma bandeira de convicções. Mas só se representa a si e à sua obra – o único mundo que ele verdadeiramente representa, é o que foi capaz de criar.

A atribuição de prémios, nomeadamente internacionais, e sobretudo em países com grandes carências de reconhecimento, pode criar os maiores equívocos nesta matéria. José Saramago teve uma clara percepção disto. Lembro-me bem de, quando em 1998 lhe foi atribuído o prémio Nobel, ter falado com ele ao telefone quando já se encontrava em Lanzarote, regressado de Frankfurt, onde recebera a notícia. Preparava-se então para seguir para Lisboa, mas estava preocupado com as notícias que tinha sobre o tipo de recepção que lhe estavam a preparar, "como se fosse uma coisa de futebóis". E acrescentou, em palavras que recordo como se fosse hoje: "eu sou escritor, o que se fizer tem que ser uma homenagem à literatura". Informei-me, e soube que estava de facto a ser preparada uma "chegada triunfal" que poderia fazer o gáudio de algumas televisões e de alguns animadores de multidões, mas que ele teria, com toda a certeza, detestado.

Fez-se então o que José Saramago desejava: sem nenhum jornalista ou media a acompanhá-lo, ele veio para Lisboa onde, no CCB, lhe seria prestado um inesquecível tributo, simultaneamente oficial e popular, que abriu com uma interminável e emocionada "standing ovation" e prosseguiu com a evocação da obra e a jubilação do prémio, sempre com o pensamento no essencial – a literatura. Era à literatura que os portugueses deviam - numa imagem que José Saramago repetiria muitas vezes – poder sentir-se então com mais um ou dois centímetros…

Para mim, o momento Nobel fechou um período e abriu outro. Fechou o período da normalização das relações de José Saramago com o Estado português, muito abaladas com o episódio censório de 1992. Eu tinha assumido, quando em 1995 iniciei funções no ministério da Cultura, o imperativo de ultrapassar esse problema. A ocasião propiciou-se, por mero acaso rapidamente, com a atribuição por essa altura a José Saramago do Prémio Camões desse ano, a que o governo se associou com naturalidade. Depois, com o tempo, criou-se uma relação institucional de reconhecimento e de respeito mútuo, que José Saramago valorizava. Lembro, por exemplo, a sua presença e palavras no anúncio de uma intervenção de requalificação no "seu" Convento de Mafra, a empatia filosófica num lançamento muito especial, em Madrid, do «Ensaio sobre a Cegueira», o seu empenho na Feira de Frankfurt dedicada a Portugal, a cumplicidade lusófona na Bienal do Livro no Rio de Janeiro ou o apoio que fez questão de dar ao Comboio da Literatura Lisboa/Moscovo…

O período que se abriu, foi o de um conhecimento mais próximo de José Saramago. Das diversas ocasiões de conversa e de troca de ideias que fomos tendo, nasceu não só uma autêntica estima pessoal, mas também a descoberta de uma outra face, que a imagem pública de José Saramago ocultava: uma tranquila modéstia, um imprevisível humor, uma generosa capacidade de admiração por tantos escritores. Longe da imagem muito comum de um José Saramago amargo, conheci então um José Saramago feliz. Céptico quanto à evolução do mundo, inquieto com os impasses do país, cáustico na sua visão da natureza humana, é certo. Mas feliz, de uma felicidade que decorria fundamentalmente do seu sucesso literário mundial, dos leitores que tinha conseguido conquistar para o seu mundo, em todo o mundo.

Nos últimos anos fomos vizinhos, ele e a Pilar descobriram os encantos de um pequeno bairro de Lisboa, onde hoje a Blimunda também vive. Foi lá que conversámos sobre literatura, sobre o mundo, sobre os seus últimos projectos: a exposição «A consistência dos Sonhos», a «Viagem do Elefante», o «Caim». E também sobre as apreensões e as ambições da sua Fundação, cujo destino em boa medida fica agora – em coerência com tudo o que se disse nos últimos dias – nas mãos da Câmara de Lisboa e do Ministério da Cultura.

Eu atrever-me-ia, de resto, a ver no último texto publicado, no dia da sua morte, no blog «Outros Cadernos de Saramago», o programa que poderá dar à Fundação José Saramago um sentido tão estratégico como perene: «Falta-nos reflexão, pensamento, necessitamos do trabalho de pensar, parece-me que sem ideias não vamos a lado algum». O trabalho de pensar – é isso!
(Diário de Notícias,24.06.2010)

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