via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 9/13/10
A MINHA PASSAGEM pela Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, como cadete do Curso de Oficiais Milicianos, não foi brilhante. Longe disso. Terminei o dito curso, em Fevereiro ou Março de 1953, em oitavo lugar…a contar do fim, num total de cento e vinte cadetes. Tive por comandante um coronel, que ficou célebre por ter silenciado, pelas armas, cerca de um milhar de trabalhadores das roças da então nossa ilha de São Tomé, de que era governador. Como consequência deste massacre, que a censura do Estado Novo procurou ocultar, os mais altos responsáveis militares transferiram-no para Vendas Novas como comandante da dita Escola Prática de Artilharia. Ler mais
Concluída a fase de cadete, situação em que, por natureza, não me empenhei o suficiente, fui colocado em Évora, como aspirante miliciano, no Regimento de Artilharia 3. Corria tudo normalmente e sem sobressaltos, até ao dia em que o primeiro-sargento Araújo me chamou de parte e me conduziu a uma sala no 1.º andar, onde se situavam as dependências do comando, vazias de gente àquela hora do fim da tarde.
O primeiro Araújo era casado com uma modista que aprendera, com a minha mãe, a arte da costura. E a minha mãe fora madrinha desse casamento. Com uma vintena de anos a mais do que eu, este sargento e amigo tratava-me por tu, enquanto que eu, como mandava a boa educação, lhe dava senhoria. No quartel, na presença de terceiros, ele tratava-me por "meu aspirante" e eu a ele, como era regra, por "nosso primeiro".
Chegados a uma sala que ele abriu com chave, retirou, de dentro de uma gaveta, uma pasta e, depois de me pedir absoluto segredo, deu-me a ler um documento chegado de Vendas Novas, timbrado de confidencial, a vermelho, ao alto, do lado direito, no qual se fazia o meu registo biográfico. O texto, pouco ou nada abonatório das minhas capacidades, falava do meu pouco aprumo militar e terminava dizendo (sic):
"…não lhe devendo nunca, ser confiadas missões que exijam discernimento mental."
- Agora não me lixes. - Disse este meu amigo, ao guardar o papel na pasta de onde o tinha tirado.
- Ninguém pode saber que te mostrei isto. Fazes de conta que não sabes de nada. É como se não existisse. – Concluiu, encaminhando-me para a saída.
De facto, eu tinha notado algo de estranho da parte do comandante do regimento, quando, no dia da minha chegada, fui ao seu gabinete apresentar-me. Aí, o coronel falou comigo, demoradamente, num estilo que mais parecia um exame oral. Eu estranhei, mas não suspeitei que este cabo-de-guerra estava a procurar avaliar o meu cociente intelectual. Não sei que conclusão tirou desta tentativa de aferição das minhas capacidades. Só sei que, na distribuição de serviço que a todos obrigava, para além da instrução aos recrutas, me coube a regular inspecção das limpezas, nas cavalariças, nas cozinhas, nas latrinas, na parada. Tudo o que exigisse cuidados de asseio e higiene tinha de ser vistoriado e essa era, com efeito, uma missão que não exigia grande discernimento mental. A coadjuvar-me nesta incumbência tinha um segundo-sargento, particularmente eficaz e exigente, a quem alguns faxinas chamavam o "cheira-merda", e que, antes de mim, vasculhava e farejava tudo o que era sítio e buraco. Assim, quando chegava a minha hora de inspeccionar, estava tudo impecável.
Os meses foram passando, o comandante, terminado o seu tempo, deu lugar a outro vindo de fora e a minha debilidade mental acabou esquecida. Este juízo a meu respeito não o interpreto como menoridade intelectual dos militares que, em Vendas Novas, me avaliaram. Reflecte, sim, a minha não integração no seu mundo. Um mundo fardado, com botas esmeradamente engraxadas, amarelos brilhantes de solarine, continências aprumadas e sonoras batidas de tacão, um mundo que, manifestamente, não era o meu e com o qual só fiz as pazes por gratidão e respeito pelos capitães de Abril.
(1) - "Bonifácio" foi o nome por que ficou na história o obus 11,4 c, de 1917, e que a minha geração ainda aprendeu a manejar.
Concluída a fase de cadete, situação em que, por natureza, não me empenhei o suficiente, fui colocado em Évora, como aspirante miliciano, no Regimento de Artilharia 3. Corria tudo normalmente e sem sobressaltos, até ao dia em que o primeiro-sargento Araújo me chamou de parte e me conduziu a uma sala no 1.º andar, onde se situavam as dependências do comando, vazias de gente àquela hora do fim da tarde.
O primeiro Araújo era casado com uma modista que aprendera, com a minha mãe, a arte da costura. E a minha mãe fora madrinha desse casamento. Com uma vintena de anos a mais do que eu, este sargento e amigo tratava-me por tu, enquanto que eu, como mandava a boa educação, lhe dava senhoria. No quartel, na presença de terceiros, ele tratava-me por "meu aspirante" e eu a ele, como era regra, por "nosso primeiro".
Chegados a uma sala que ele abriu com chave, retirou, de dentro de uma gaveta, uma pasta e, depois de me pedir absoluto segredo, deu-me a ler um documento chegado de Vendas Novas, timbrado de confidencial, a vermelho, ao alto, do lado direito, no qual se fazia o meu registo biográfico. O texto, pouco ou nada abonatório das minhas capacidades, falava do meu pouco aprumo militar e terminava dizendo (sic):
"…não lhe devendo nunca, ser confiadas missões que exijam discernimento mental."
- Agora não me lixes. - Disse este meu amigo, ao guardar o papel na pasta de onde o tinha tirado.
- Ninguém pode saber que te mostrei isto. Fazes de conta que não sabes de nada. É como se não existisse. – Concluiu, encaminhando-me para a saída.
De facto, eu tinha notado algo de estranho da parte do comandante do regimento, quando, no dia da minha chegada, fui ao seu gabinete apresentar-me. Aí, o coronel falou comigo, demoradamente, num estilo que mais parecia um exame oral. Eu estranhei, mas não suspeitei que este cabo-de-guerra estava a procurar avaliar o meu cociente intelectual. Não sei que conclusão tirou desta tentativa de aferição das minhas capacidades. Só sei que, na distribuição de serviço que a todos obrigava, para além da instrução aos recrutas, me coube a regular inspecção das limpezas, nas cavalariças, nas cozinhas, nas latrinas, na parada. Tudo o que exigisse cuidados de asseio e higiene tinha de ser vistoriado e essa era, com efeito, uma missão que não exigia grande discernimento mental. A coadjuvar-me nesta incumbência tinha um segundo-sargento, particularmente eficaz e exigente, a quem alguns faxinas chamavam o "cheira-merda", e que, antes de mim, vasculhava e farejava tudo o que era sítio e buraco. Assim, quando chegava a minha hora de inspeccionar, estava tudo impecável.
Os meses foram passando, o comandante, terminado o seu tempo, deu lugar a outro vindo de fora e a minha debilidade mental acabou esquecida. Este juízo a meu respeito não o interpreto como menoridade intelectual dos militares que, em Vendas Novas, me avaliaram. Reflecte, sim, a minha não integração no seu mundo. Um mundo fardado, com botas esmeradamente engraxadas, amarelos brilhantes de solarine, continências aprumadas e sonoras batidas de tacão, um mundo que, manifestamente, não era o meu e com o qual só fiz as pazes por gratidão e respeito pelos capitães de Abril.
(1) - "Bonifácio" foi o nome por que ficou na história o obus 11,4 c, de 1917, e que a minha geração ainda aprendeu a manejar.
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