sábado, 18 de setembro de 2010

“JUS DE FRUITS”

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 9/5/10
QUANDO, EM 1964, concluí o 3ème Cycle, em Sedimentologia, na Universidade de Paris, um grau académico equivalente ao nosso mestrado, com a orientação directa do professor André Cailleux, na capital francesa, e o apoio, à distância, dos professores Orlando Ribeiro e Carlos Teixeira, em Lisboa, oferecemos, a Isabel e eu, um pot aos nossos colegas e amigos do departamento de Geologia que me acolhera, como era hábito ali em idênticas situações. A tradição local nestas confraternizações passava sempre por umas garrafas de champagne e por aqueles incaracterísticos aperitivos ensacados, à venda no mercado. Ler mais

Portugueses em França nos anos difíceis da emigração dos nossos conterrâneos, quando por todo o lado e a toda a hora nos punham na cara os bidonvilles de Champigny e outros, entendemos sair da rotina, despersonalizada, e dar calor humano e sentido cultural à esperada confraternização.

Além dos queijos, dos enchidos e do vinho do Porto levados de cá, a Isabel e a Piedade, uma nossa vizinha no Hotel Blanadet, fritaram uma montanha de pasteis de bacalhau, os beignets de morue, como eles logo lhes chamaram após as explicações que lhes demos. Um bacalhau inteiro, vários quilos de batatas, muita cebola e salsa e não sei quantos ovos e quantas garrafas de óleo para fritar deram-lhes para uma madrugada e uma manhã na cozinha. Nessa manhã eu estava a dar contas ao Júri do estudo geológico a que procedera na zona central da bacia do Tejo, mais precisamente na região de Ponte de Sor. Na véspera comprámos a fruta, o vinho branco, o açúcar, e os demais ingredientes para o cup, bebida de que os meus colegas não tinham a menor ideia. Terminadas as provas académicas, transportámos tudo para o laboratório do departamento, nesse dia a servir de cozinha. Toda a gente, entre técnicos e administrativos, descascou e migou fruta e transformou-se a biblioteca em salão de festas.

Todos nós aqui em Portugal aprendemos a chamar gobelet àqueles copos de vidro pirex muito usados nos laboratórios de química, dos mais pequenos com escassos centímetros cúbicos de capacidade aos maiores, de um, dois e, até, cinco litros. Acontece que, com este sentido, o termo não é usado em França. Em vez dele adoptou-se "becher", nome do alquimista alemão do século XVII, Johan Joachim Becher. Isto para dizer que distribuímos por dois dos maiores desses vasos o cup que fizemos com muitos litros de vinho branco, uma garrafa de vinho do Porto, meia garrafa de aniz, mais de um quilo de açúcar branco, muita fruta, a que havia na época, picada miudinha, uma garrafa de água com gás, Perrier, e muitos cubos de gelo.

Às quatro da tarde reuniu-se todo o pessoal do departamento, os membros do júri, uns tantos portugueses, como nós a estudarem em Paris, e outros, de entre amigos de passagem pela cidade das luzes.

Nós, os portugueses, conhecíamos bem os efeitos perversos do cup, que sobe à cabeça tão rápido quanto desce, docinho e fresquinho, pela goela abaixo.

Mas os nossos amigos franceses e outros, de outras nacionalidades, ali em estágio, não sabiam. Foi uma alegria colectiva, com muitos risos, muitas lágrimas e muitas daquelas conversas infindáveis e peganhosas que estas situações libertam.

– Moi, je me mets au jus de fruits – explicava Mme Miskowski, uma bolseira polaca, a preparar uma tese de doutoramento em mineralogia – Le Portô, ça c'est bon, mais ça monte vite!

Um tal cuidado em preferir aquela bebida fresca e açucarada, que julgou ser sumo de fruta, valeu-lhe a maior bebedeira da sua vida e que ela, hoje, professora universitária jubilada, recorda com uma doce e lusitana saudade.

- Mais, je pensais, vraiment, que c'était du jus de fruit!...

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