segunda-feira, 6 de setembro de 2010

SAUDADES DE GOA

SAUDADES DE GOA

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 8/29/10
A GEOMORFOLOGIA é uma disciplina fundamental entre as licenciaturas do ensino universitário na área das Ciências da Terra, tendo por objecto o estudo das formas de relevo terrestres. Explica-nos porque há praias nuns sítios e arribas rochosas noutros, porque é que a serra de Sintra surge como um relevo isolado acima das terras aplanadas que a rodeiam ou porque é a Ria Formosa uma área de marismas. A configuração das montanhas, o escavamento dos vales pela erosão dos rios ou dos glaciares, o porquê das planícies de inundação, como é o caso do nosso Ribatejo, aqui, ou do Bangladesh, lá longe, são preocupações da Geomorfologia. Nela se aprende a relacionar a paisagem de uma dada região com o tipo das rochas que a constituem, com o clima aí reinante e, consequentemente, com a vegetação que eventualmente a cubra. Uma paisagem em terrenos de xisto é diferente de uma outra moldada em fragas de granito. Há particularidades que as distinguem. Às colinas suaves e arredondadas pela erosão nos campos xistentos do Baixo Alentejo, estendendo-se numa quase planura, opõem-se formas mais vigorosas e alcantiladas nas vertentes graníticas de certas áreas montanhosas do norte do país. Longas cristas alinhadas no terreno e eriçadas de cumes pontiagudos são a expressão da existência de rochas muito duras e estratificadas, como é o caso dos quartzitos, de que há belos exemplos, entre nós, desde a serra de Alcaria Ruiva, no Alentejo, à de la Culebra, perto de Rio de Onor, no nordeste Transmontano, passando pelas Portas de Rodão, pelos Penedos de Góis e por muitas outras serranias da mesma natureza. Ler mais
Tal correlação entre a Geologia e o relevo permite a um observador experimentado, instalado, por exemplo, a bordo de um avião e a uma altitude conveniente, reconhecer a natureza dos terrenos que sobrevoa. O mesmo reconhecimento pode ser feito cá em baixo, num gabinete, usando pares de fotografias aéreas que permitem simular uma visão em relevo da área fotografada. Esta possibilidade de observação, dita estereoscópica, utilizando aparelhagem mais ou menos sofisticada, tem permitido avanços consideráveis, em termos de rigor e de rapidez, não só na cartografia em geral, como também na feitura de mapas geológicos, pela utilização de uma metodologia, conhecida por fotogeologia, que tem em conta a referida correlação entre a natureza das rochas e o relevo.

Tudo isto vem a propósito para explicar a razão de, depois do meu adeus às armas como oficial miliciano, ter tido como aluno de Geomorfologia, na Faculdade de Ciências, em finais dos anos sessenta do século que passou, um major, chefe de um departamento de cartografia do Exército, sediado do outro lado da rua.

Por exigência das suas funções ou por vontade própria de aprofundar os conhecimentos nesta área, este oficial superior inscreveu-se na dita cadeira, como qualquer aluno regular, com a única regalia, aliás, comum a todos os estudantes empregados, que consistia, praticamente, em disporem de horários de trabalhos práticos flexíveis, aos fins da tarde e aos sábados. A institucionalização do regime de trabalhador-estudante estava ainda longe de ser um facto.

O major era um homem à volta dos quarenta e tal anos, alto e sobre o forte, voluntarioso, seguro de si, interessado no curso e rápido na assimilação das matérias versadas. O relacionamento que mantivemos durante o correspondente semestre lectivo, frutuoso para ambos, além de simpático e até cordial, nunca deixou de ser um tanto cerimonioso, marcado por um certo distanciamento cortês. Eu era um jovem assistente e ele um homem feito, com posição de algum destaque na hierarquia militar, bem acima dos muitos subalternos que chefiava, alguns milicianos como, aliás, eu o fora, poucos anos antes. Esta distância era ainda acentuada pela diferença de idades entre mim e o major, com cerca de uma dezena de anos a mais do que eu, o que, neste caso, contava também a seu favor. Nunca me dando senhoria, sempre se me dirigiu tratando-me por doutor.

– Ó doutor, isto, ó doutor, aquilo. Quando é que o doutor pensa marcar o exame? Se o doutor estivesse de acordo, poderíamos completar esta matéria com uma visita da turma ali ao meu serviço, etc. – Era assim a sua maneira de falar comigo, dispensando-me a consideração que entendia ser-me devida, sem deixar, no entanto, de acentuar a sua posição. Em resposta, sempre o tratei por senhor major, talvez por razões culturais trazidas do Alentejo, onde é regra dar senhoria aos mais velhos, independentemente das condições de cada um. Este estatuto de respeito mútuo, de cada um no seu devido lugar, funcionou perfeitamente. Foi agradável tê-lo tido como aluno, pela simpatia, cordialidade e nível intelectual da convivência, pelo interesse que sempre dedicou às aulas, porque com ele aprendi muitas coisas ligadas à fotointerpretação e até porque, sendo ele um homem disciplinado e organizado, funcionou como elemento dinamizador entre os condiscípulos.

Terminado o exame com uma belíssima classificação, este meu ex-aluno, fez questão de me convidar para almoçar em sua casa e apresentar-me a família, a mulher e um casal de filhos adolescentes. Gente simpática mas muito formal a denunciar que a disciplina militar também tinha ali chegado. O major havia estado na Índia integrado nas tropas expedicionárias para ali enviadas nos anos de 1950, tinha particular gosto pela gastronomia e fazia questão de dar um perfume oriental a muitos dos pratos que fazia. – São saudades de Goa, - dizia, ao apresentar na mesa um magnífico prato de cação com um delicioso toque de caril.

– Sabe, – justificava – estive uns anos em Évora e fiquei fan das vossas sopas de cação. Em Goa especializei-me no caril. Sou eu mesmo que faço as misturas, a meu gosto.

À mesa, falámos muito de culinária, além de outras coisas e praticamente nada do que tinha sido a causa da nossa aproximação. Percebendo o meu gosto muito particular pela arte de Pantagruel, levou-me depois para a cozinha, mostrou-me e deu-me a cheirar as suas preciosidades exóticas: cardamomo, sementes de coentro, gengibre, açafrão, curcuma, e outras de que nunca ouvira falar.

– Fique para jantar, doutor – insistia, com sinceridade. – Vamos fazer aí uma combinação indo-alentejana.

Não foi fácil declinar o convite e acabámos por nos despedir, com promessas de reencontro.

Pouco tempo depois o major foi transferido, por razões de progressão na carreira, para um outro serviço longe dali. Disse-nos adeus, deixando entre nós a lembrança de um muito bom aluno.

Passados uns cinco a seis anos, um belo dia, na Baixa, ao fundo da Avenida da Liberdade, muito perto dos Restauradores, demos de frente um com o outro. Num gesto de visível satisfação, mutuamente retribuída, e a seguir a um cordial aperto de mão, ambos esboçámos o meio-abraço adequado ao que fora o nível do nosso relacionamento.

– É um prazer vê-lo, doutor! Como vão as coisas na Faculdade? E o Nunes, que é feito dele? Desde que saí dos Serviços que lhe perdi o rasto – proferiu naquele seu modo enérgico, cheio de vida e vigor, rematando com uma expressão muito sua: – É a vida!
– E o senhor major, como tem passado? Está um pouco mais forte, ou é impressão minha!? E a família, vai bem?

A conversa não foi longa. Disseram-se aquelas frases de circunstância e, por fim, as habituais formas de despedida: – Tive muito prazer em vê-lo senhor major. Até uma próxima oportunidade. Faça-nos uma visita.

Sorridente o meu ex-aluno, enquanto me apertava a mão com uma curta vénia, foi-me dizendo: – Sabe doutor, eu já não sou major. Vai para dois anos que fui promovido. Agora sou tenente-coronel. É assim! São os anos a passarem. É a vida! – rematou, com um arzinho de brincadeira sem jeito, denunciando o pouco à-vontade posto naquela informação que entendeu por bem não deixar de me dar.

Eu também já fora promovido. Concluíra entretanto o doutoramento mas, é claro, que não lhe referi este facto. Cada um é como é. Desculpei-me como pude, meio vexado pela gaffe, e esbocei um sorriso com um leve baixar de cabeça de quem se prepara para retomar o caminho que trazia.

– Um abraço ao Nunes – disse ainda o nosso agora tenente-coronel, ao retomar o seu destino.

Olhei-o uma vez mais, já de costas, no seu passo confiante e disse em voz baixa, como se falasse para um interlocutor imaginário ali ao meu lado: – Estes gajos não mudam.

Para quem não saiba, que fique a saber que na hierarquia do oficialato do Exército, ao major segue-se o tenente-coronel que, após um tirocínio, pode ascender ao posto de coronel e ser eventualmente comandante de um regimento. Quis o acaso que, uma semana depois, na rua da Escola Politécnica, déssemos novamente de caras um com o outro. Ambos fomos sensíveis àquela situação de acaso, muito no tipo do "não há fome que não dê em fartura", e expressámo-lo nas breves palavras de cumprimento que trocámos.

– Veja lá, ó doutor, tanto tempo sem ter o prazer de o ver e, agora, em meia dúzia de dias, duas vezes, quase seguidas... Vim aqui ao meu antigo Serviço tratar de uns papéis. Sabe como é?! Ou uma pessoa se mexe e vem pessoalmente dar uns abanões ou as coisas arrastam-se indefinidamente. Os militares não costumam ser assim. São despachados e desenrascados mas, às vezes, lá há uns mais burocratas. Mas quando é preciso não há como puxar pelos galões. São os administrativos, sabe como é!? É a vida!

Numa inspiração, surgida repentinamente como um flash, que teve muito a ver com um certo antimilitarismo que me ficou da passagem pelas fileiras, atirei-lhe, no ar mais natural possível: – Viva, senhor coronel! É um prazer tornar a vê-lo!

Um pouco embaraçado, o nosso homem reagiu, de imediato, emendando-me sorridente: – Ó doutor, eu ainda não sou coronel. Lá chegarei, se Deus quiser, mas a seu tempo. As promoções não são assim tão rápidas. Há que dar tempo ao tempo. É a vida!

– Tem toda a razão senhor tenente-coronel. Eu sei, mas acontece que eu lhe devia um galão desde a semana passada. – Justifiquei-me, com um sorriso sacana, bem aberto no rosto.

– Boa piada, ó doutor. Prazer em vê-lo. Um abraço ao Nunes – acrescentou, ao afastar-se.

- Até uma próxima oportunidade – ainda gritei, mas ele já não ouviu.

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