via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 8/22/10
DURANTE OS TRABALHOS de feitura dos moldes das pegadas que antecederam a abertura dos túneis de Carenque, íamos almoçar num muito modesto estabelecimento da zona, meio-café, meio-restaurante, onde se comia um saboroso bacalhau com massa de cotovelo e feijão frade, numa confecção muito semelhante a uma muito frequente no rancho no meu tempo de serviço militar, em Artilharia 3, em Évora. Ler mais
Simples e bom, este prato popular no tempo barato do "fiel amigo", ficou-me associado ao estudo e à luta pela salvaguarda da importante jazida com pegadas de dinossáurio de Pego Longo, perto daquela localidade e, que, felizmente, se saldou vitoriosa, com a construção dos dois túneis da CREL que hoje lhe passam por baixo.
O dono da casa estava ao balcão e servia às mesas, e a mulher, que cozinhava, dava-lhe uma ajuda, trazendo, ela mesma, as travessas aos clientes com os quais gostava de tagarelar, quebrando assim a solidão da cozinha, escura, ao fundo da sala.
– Que coisa boa – achei por bem elogiá-la, dirigindo-me ao marido, a servir-me o café. – Parabéns à cozinheira. Uma delícia, este bacalhau.
Não tinha ainda terminado a bica, francamente má, diga-se, já a dona Aurora ali estava à minha frente, limpando as mãos ao avental.
- Quer dizer que gostaram?
- Muito, mesmo. Parabéns. Tem é de me dizer qual é o segredo.
– Não tem segredo nenhum – garantiu, feliz. – Faço um esturgido bem temperado, com azeite, muita cebola, alho, louro, pimentão doce, uns cravinhos e uma ou duas malaguetas. Às vezes ponho tomate, outras vezes, não. Hoje não pus, gosto mais dele assim. A seguir, meto-lhe o bacalhau já sem as espinhas maiores e cortado aos bocados. Não lhe tiro a pele que aí é que está o gosto. Deito-lhe a massa e, no fim, o feijão, que já tinha cozido à parte. Depois é só ter cuidado para não deixar secar. Vou vendo e deitando umas lagriminhas da água de cozer o feijão e pronto. Segredo, segredo... só se for...
Neste preciso momento fomos interrompidos pela chegada repentina do Cristóvão, sorridente e ofegante, com uma caixa de cartão nas mãos. Já nos conhecíamos, pois este jovem guineense, aluno da escola local, aparecia com frequência, acompanhando os trabalhos que fazíamos sobre a grande laje marcada pelas pegadas e até ajudava. De olhar vivo e inteligente, excitado, este nosso amigo vinha da parte do pai, operário numa obra, algures nos arredores de Lisboa. E trazia também uma denúncia, quase em segredo, cheia de reticências e medos. No entender do pai, dizia, «era um crime deitar-se fora uma coisa destas». Acontece que, durante uma escavação de caboucos, tinha-se-lhe deparado uma porção de fósseis. De dinossáurios, claro, foi o que todos logo ali pensaram, até o engenheiro responsável, que não hesitou em mandar arrancar aquela "droga" e enfiá-la num contentor de entulhos, antes que um qualquer "arqueólogo" viesse atrasar-lhe a obra.
– Trago aqui uns dentes. E são bem grandes... No fim do dia, depois do pessoal se ir embora, o meu pai foi lá buscar os melhores e trouxe-os às escondidas. Disse-me que lhos entregasse mas que não lhe lixasse a vida.
Aberta a caixa que trazia e desenrolados os jornais em que vinham cuidadosamente acondicionados, o que se nos deparou foi uma meia dúzia de exemplares de vulgaríssimos rudistas.
– Não, não são dentes – sorri-lhe com simpatia. – Era bom que fossem, mas antes assim. Não se perdeu grande coisa. São fósseis de moluscos que aqui viveram há uns noventa a cem milhões de anos e que se extinguiram mais tarde, há cerca de sessenta e cinco milhões.
- Milhões de anos? – admirou-se a dona da casa, meio incrédula.
– Sim, milhões de anos – confirmei. – Nessa altura tudo aqui era mar. Estes fósseis que julgavas serem dentes, são as cascas desses animais que edificavam acumulações como os recifes que hoje existem nas águas tropicais. Colados ao lado e por cima uns dos outros, formaram bancos, à semelhança do que fazem as ostras. As camadas de calcário que ainda hoje se podem ver, no vale de Alcântara, ou as que se exploram em Pêro Pinheiro, formaram-se desse modo. É o lioz, uma pedra que fez época na arquitectura e estatuária de Lisboa, hoje em parte substituída por muitas pedras de importação.
– Ainda bem que não são dentes! – Aquiesceu o jovem – Fico mais descansado. Era uma pena...
– Agradece por mim ao teu pai o cuidado que teve e, olha – retive-o, quando se preparava para sair. – Toma este livro. É para ti. Tem um capítulo geral e um outro sobre os dinossáurios portugueses. Aprende-se aqui muita coisa. Mostra-o ao teu pai. Acho que ele vai gostar.
– É o Catálogo da Exposição dos Dinossáurios da China que esteve lá no seu Museu. – Exclamou, entusiasmado, ao reconhecer-lhe a capa. – Fui vê-la numa visita da minha escola. Não o comprei porque não tinha "bago". Obrigado – rematou, feliz.
– Então o engenheiro, que tem estudos, ia deitar fora uma coisa assim? – tornou a Aurora à conversa, mal o rapaz deu costas. – Mais a mais, estando convencido de que era coisa importante? E foi o desgraçado do preto que nem na escola andou, que soube dar-lhe valor? Anda tudo trocado, minha Nossa Senhora!
– Sabe, – interrompi-a nestas suas judiciosas reflexões – nem toda a gente que tira um curso fica culta. Ter um curso e ter cultura são coisas diferentes. Mas afinal, diga lá qual é o segredo – insisti, retomando a conversa interrompida com a chegada do Cristóvão, ao que ela, levantando as mãos, rodando-as e a olhar para elas, pareceu concluir:
– Só se for o gosto com que mexo em tudo o que é da cozinha.
Simples e bom, este prato popular no tempo barato do "fiel amigo", ficou-me associado ao estudo e à luta pela salvaguarda da importante jazida com pegadas de dinossáurio de Pego Longo, perto daquela localidade e, que, felizmente, se saldou vitoriosa, com a construção dos dois túneis da CREL que hoje lhe passam por baixo.
O dono da casa estava ao balcão e servia às mesas, e a mulher, que cozinhava, dava-lhe uma ajuda, trazendo, ela mesma, as travessas aos clientes com os quais gostava de tagarelar, quebrando assim a solidão da cozinha, escura, ao fundo da sala.
– Que coisa boa – achei por bem elogiá-la, dirigindo-me ao marido, a servir-me o café. – Parabéns à cozinheira. Uma delícia, este bacalhau.
Não tinha ainda terminado a bica, francamente má, diga-se, já a dona Aurora ali estava à minha frente, limpando as mãos ao avental.
- Quer dizer que gostaram?
- Muito, mesmo. Parabéns. Tem é de me dizer qual é o segredo.
– Não tem segredo nenhum – garantiu, feliz. – Faço um esturgido bem temperado, com azeite, muita cebola, alho, louro, pimentão doce, uns cravinhos e uma ou duas malaguetas. Às vezes ponho tomate, outras vezes, não. Hoje não pus, gosto mais dele assim. A seguir, meto-lhe o bacalhau já sem as espinhas maiores e cortado aos bocados. Não lhe tiro a pele que aí é que está o gosto. Deito-lhe a massa e, no fim, o feijão, que já tinha cozido à parte. Depois é só ter cuidado para não deixar secar. Vou vendo e deitando umas lagriminhas da água de cozer o feijão e pronto. Segredo, segredo... só se for...
Neste preciso momento fomos interrompidos pela chegada repentina do Cristóvão, sorridente e ofegante, com uma caixa de cartão nas mãos. Já nos conhecíamos, pois este jovem guineense, aluno da escola local, aparecia com frequência, acompanhando os trabalhos que fazíamos sobre a grande laje marcada pelas pegadas e até ajudava. De olhar vivo e inteligente, excitado, este nosso amigo vinha da parte do pai, operário numa obra, algures nos arredores de Lisboa. E trazia também uma denúncia, quase em segredo, cheia de reticências e medos. No entender do pai, dizia, «era um crime deitar-se fora uma coisa destas». Acontece que, durante uma escavação de caboucos, tinha-se-lhe deparado uma porção de fósseis. De dinossáurios, claro, foi o que todos logo ali pensaram, até o engenheiro responsável, que não hesitou em mandar arrancar aquela "droga" e enfiá-la num contentor de entulhos, antes que um qualquer "arqueólogo" viesse atrasar-lhe a obra.
– Trago aqui uns dentes. E são bem grandes... No fim do dia, depois do pessoal se ir embora, o meu pai foi lá buscar os melhores e trouxe-os às escondidas. Disse-me que lhos entregasse mas que não lhe lixasse a vida.
Aberta a caixa que trazia e desenrolados os jornais em que vinham cuidadosamente acondicionados, o que se nos deparou foi uma meia dúzia de exemplares de vulgaríssimos rudistas.
– Não, não são dentes – sorri-lhe com simpatia. – Era bom que fossem, mas antes assim. Não se perdeu grande coisa. São fósseis de moluscos que aqui viveram há uns noventa a cem milhões de anos e que se extinguiram mais tarde, há cerca de sessenta e cinco milhões.
- Milhões de anos? – admirou-se a dona da casa, meio incrédula.
– Sim, milhões de anos – confirmei. – Nessa altura tudo aqui era mar. Estes fósseis que julgavas serem dentes, são as cascas desses animais que edificavam acumulações como os recifes que hoje existem nas águas tropicais. Colados ao lado e por cima uns dos outros, formaram bancos, à semelhança do que fazem as ostras. As camadas de calcário que ainda hoje se podem ver, no vale de Alcântara, ou as que se exploram em Pêro Pinheiro, formaram-se desse modo. É o lioz, uma pedra que fez época na arquitectura e estatuária de Lisboa, hoje em parte substituída por muitas pedras de importação.
– Ainda bem que não são dentes! – Aquiesceu o jovem – Fico mais descansado. Era uma pena...
– Agradece por mim ao teu pai o cuidado que teve e, olha – retive-o, quando se preparava para sair. – Toma este livro. É para ti. Tem um capítulo geral e um outro sobre os dinossáurios portugueses. Aprende-se aqui muita coisa. Mostra-o ao teu pai. Acho que ele vai gostar.
– É o Catálogo da Exposição dos Dinossáurios da China que esteve lá no seu Museu. – Exclamou, entusiasmado, ao reconhecer-lhe a capa. – Fui vê-la numa visita da minha escola. Não o comprei porque não tinha "bago". Obrigado – rematou, feliz.
– Então o engenheiro, que tem estudos, ia deitar fora uma coisa assim? – tornou a Aurora à conversa, mal o rapaz deu costas. – Mais a mais, estando convencido de que era coisa importante? E foi o desgraçado do preto que nem na escola andou, que soube dar-lhe valor? Anda tudo trocado, minha Nossa Senhora!
– Sabe, – interrompi-a nestas suas judiciosas reflexões – nem toda a gente que tira um curso fica culta. Ter um curso e ter cultura são coisas diferentes. Mas afinal, diga lá qual é o segredo – insisti, retomando a conversa interrompida com a chegada do Cristóvão, ao que ela, levantando as mãos, rodando-as e a olhar para elas, pareceu concluir:
– Só se for o gosto com que mexo em tudo o que é da cozinha.
In "…Com Poejos e outras Ervas", Âncora Editora, 2001
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