quinta-feira, 26 de junho de 2008

Carlos Pato: a morte em Caxias há 58 anos

via As Causas da Júlia de noreply@blogger.com (Júlia Coutinho) em 25/06/08
Carlos Pato (1921 - 1950)
Foi há 58 anos, no dia 26 de Junho de 1950. Carlos Pato - Carlos Alberto Rodrigues Pato - que a PIDE prendera um ano antes (28 Maio 1949), morria na prisão de Caxias em grande sofrimento por problemas cardíacos e falta de assistência médica, após ter sido torturado. Os companheiros da cela, em desespero, contaram à família como tinham pedido ajuda e ninguém os atendera. A Pide quis enterrá-lo discretamente. A família não deixou. E o enterro fez-se para Vila Franca de Xira por entre uma terra inteira que chorava de dor e de revolta. Tinha 29 anos. Era casado e deixou dois filhos bébés: a Maria Clara, que tinha 8 meses quando prenderam o pai, e o João Carlos que nasceu 5 meses depois do pai ter sido preso.
Irmão de Octávio Pato, era empregado bancário e prestigiado dirigente associativo, pertencendo desde muito jovem ao movimento Neo-Realista que à sombra de Redol e de Soeiro pela zona ribeirinha se implantara. E foi precisamente Alves Redol quem, um ano após a sua morte, prefaciou «Alguns Contos», um pequeno livro com três contos seus, que os amigos editaram. Aqui fica esse prefácio e a minha homenagem a uma vítima da PIDE que a História silenciou.
«Quiseram os teus amigos mais íntimos que palavras minhas acompanhassem a publicação de alguns contos que escreveste. E nunca a nossa maravilhosa língua, a língua do povo que tanto amavas, e por quem deste tudo o que de mais precioso tinhas para legar, a mesma com que os teus filhos hão-de contar de ti aquilo que mereces, nunca a nossa maravilhosa língua se tornou tão incapaz para exprimir aquilo que era preciso dizer-se neste primeiro aniversário da tua morte.
Vejo-te ainda... Vejo-te sempre! Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas
dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças, e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia... Vieste com a mesma simplicidade dos camponeses que idolatravas, dos camponeses que eram carne da tua carne, e de quem herdaste essa calma interior, e essa espantosa força interior, que faz de cada um deles um herói sem nome – e que faz de todos eles a grande certeza, onde se alicerçou a independência nacional, e donde surgirá a pátria livre que ambicionavas para todos nós. Nem esse maravilhoso heroísmo te faltou – o dos sacrifícios anónimos e dos sonhos guardados mas nunca esquecidos, que tu, mais do que eles ainda, quiseste tornar vida.
Vejo-te ainda... E sempre! Como um desses homens que traz o futuro no coração, e para quem o futuro não é essa coisa mesquinha do egoísmo individual – do meu ou mesmo do nosso – mas essa seara sublime de espigas sem dono que o mundo todo guardará para si... Como um desses homens que não mede a vida da humanidade pela sua vida, e que se lhe exigem a sua, para que a outra seja mais digna de ser vivida, a oferece sem hesitações, alheio a recompensas... Como um desses homens a quem o cientista deve o seu laboratório, o artista a sua obra, o escritor os seus livros, as mães o direito de criarem os filhos nos seus braços e de os entregarem, só depois, puros, belos e dinâmicos para as tarefas da paz...
Como um desses homens para quem os poetas escreveram os seus poemas... Um José Gomes Ferreira: Volta-te e olha para a terra // - a carne da tua sombra //de flores acesa //Céu para quê?// O céu é para os que esperam //E tu morreste por uma certeza!
Ou um Carlos de Oliveira: Mais vivo porque sofreste //A morte não veio, foi-se // A eternidade constrói-se // Na beleza com que viveste.
Ou ainda num epitáfio de Sidónio Muralha que mereces na tua campa:
Largos versos irrompem do teu silêncio de granito //E tu vives inteiro em cada grito //Tu que foste maior que todas as poesias.
Foi para homens como tu que estes versos se cantaram. Que o não duvide ninguém!... Porque só quem viu uma população inteira a pedir, para si, o teu corpo, a caminhar, em silêncio, de braços agarrados numa muralha de dor, que também era esperança, entre lágrimas espontâneas, como se todos, até mesmo as crianças, fossem acompanhar um filho, poderá entender o que tu eras para todos nós... Só quem viu mulheres e meninos do povo levarem-te raminhos de flores silvestres, numa homenagem que nunca conheci igual, e os teus amigos, e os teus companheiros de trabalho, e uma população inteira, todos sofrendo essa separação, numa angústia que estava mais no nosso sangue do que nos rostos torturados por esses golpe, é que saberá compreender e testemunhar que chorámos um Homem. Um Homem de que nos cumpre honrar o exemplo de dignidade e a lição de coerência.
Daí o sentir frustradas as palavras que te dedico, porque elas são incapazes de exprimir o que tu mereces e o que te devo...
-- Devo-te muito do que há-de ser o futuro do meu filho; devemos-te todos, mesmo os que te quiseram mal, alguma coisa da felicidade que virá para os filhos de cada um... E por isso te chorámos, e por isso te lembraremos sempre, mais ainda nas horas de alegria do que nos momentos de amargura.»
Alves Redol

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