segunda-feira, 23 de junho de 2008

Que futuro para a Politécnica?

via Sopas de Pedra de A. M. Galopim de Carvalho em 23/06/08
ESTRANHAMENTE, SÓ AGORA, em pleno século XXl, 170 anos depois da sua criação, se põe em causa a sustentabilidade financeira deste magnífico conjunto arquitectónico, histórico, científico e cultural, que nos ficou da prestigiada Escola Politécnica, hoje um valioso e utilíssimo conjunto museológico, de que fazem parte o Museu de Ciência, o Museu Nacional de História Natural, incluindo o Jardim Botânico, e o venerando Instituto Geofísico Infante Dom Luís.
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Quando, há duzentos e quarenta anos, o Marquês de Pombal criou o Museu Real da Ajuda, não lhe passou pela ideia questionar a sustentabilidade financeira deste pequeno museu, um embrião à semelhança de outros que o liberalismo, na Europa do século XVIII, encorajou desenvolveu e glorificou como autênticas catedrais do iluminismo - os Museus de História Natural. Concebidos ao serviço da cidadania, foram subsidiados pelos Estados e, só mais tarde, com a sociedade de consumo, muitos deles recorreram à cobrança das entradas, uma prática entendida necessária ao seu cabal funcionamento. Quando, em 1837, foi fundada a Escola Politécnica, em substituição do caduco Colégio dos Nobres, foram ali instalados "Gabinetes de História Natural", visando os três "Reinos da Natureza", sem que a Fazenda se preocupasse com a respectiva sustentabilidade financeira. Em 1858, o espólio do Museu Real da Ajuda foi incorporado nos Gabinetes de História Natural da Escola Politécnica que, anos mais tarde, viriam a unir-se no que é hoje o Museu Nacional de História Natural. Também desta vez não se pôs em causa a sua sustentabilidade financeira. Pelo contrário, foi-lhe atribuído um orçamento compatível com a importância que lhe era outorgada pelos decisores políticos de então, os mesmos iluminados que criaram a Academia das Ciências. Um tal desafogo permitiu-lhe crescer consideravelmente, através de expedições científicas no país e além-mar - as então chamadas "viagens filosóficas" - em busca de testemunhos da Natureza, permitiu-lhe estudá-los e arquivá-los cientificamente e, ainda, colocar esse conhecimento, de forma acessível, ao alcance dos cidadãos.
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Com a República, em 1910, a Escola Politécnica, incluindo o Museu Nacional de História Natural e o Instituto Geofísico Infante Dom Luís, passaram a integrar a então criada Faculdade de Ciências, sob a tutela da Universidade de Lisboa. Também, desta vez, os republicanos não levantaram problemas à sustentabilidade financeira deste museu. Deram-lhe, sim, importância e um orçamento suficientes para suportar o ensino, a investigação científica e todas as actividades inerentes às licenciaturas nas áreas da Biologia e da Geologia, um privilégio que terminou na sequência do incêndio de 1978. Sempre os museus aqui instalados e o Jardim Botânico, estiveram abertos ao público com entrada gratuita. Foi assim ao longo do século que passou. Os tempos que se seguiram aquela trágica noite que, há 30 anos, iluminou o céu da 7ª Colina, foram anos difíceis, com orçamentos de miséria, em termos de financiamento estatal, foram anos de promessas enganosas por parte dos sucessivos governos, mas foram anos de intensa e frutuosa produção científica suportada por projectos de investigação, financiados do exterior, e, ainda, os anos das exposições mais visitadas, faladas e jamais igualadas no nosso Pais, com centenas de milhar de visitantes.
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Foi preciso chegarmos ao século XXI, no seio de uma sociedade economicista, em que a especulação bolsista domina a economia e as nossas vidas, para que se recorresse ao pagamento das entradas em alguns dos seus espaços. Foi preciso chegarmos aqui para nos virem falar da sustentabilidade financeira destas "Torres do Tombo" da biodiversidade e da geodiversidade; para nos virem falar da inevitabilidade de alienar e eventualmente, aviltar património a este pólo, mais que centenário, de cultura científica. Mas uma coisa é criar receitas próprias, pela imaginação e pelo trabalho, outra coisa é pôr-lhe em causa o presente e, deste modo, comprometer-lhe o futuro ao serviço do interesse público.
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Os que aqui trabalham não são assalariados de uma empresa que, naturalmente, visa o lucro e que, em situação de dificuldades de tesouraria, opta pela alienação de parte dos seus haveres. São, antes do mais, zeladores e guardiões intransigentes do património que receberam dos seus antecessores, um bem nacional que têm vindo a aumentar, a estudar e a divulgar. Do mesmo modo, estes museus e todo o espaço que, anos futuros de "vacas gordas", permitirão desenvolver e, assim, recuperar todo o atraso de décadas de contenção orçamental, não podem ser tratados como peças ou armazéns de drogaria alienáveis para saneamento financeiro da empresa.
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É forçoso e urgente que a Universidade, longe de procurar alienar património, como é, já hoje, um dado adquirido e público, venha, finalmente, fazer coro com os que, aqui, entendem ser seu dever profissional e cívico não abrir mão de um palmo, que seja, deste espaço, no sentido de obter, do Estado, a solução dos seus graves problemas financeiros.
Texto saído no «Público» de 23.06.2008, com o título "Os museus da Politécnica são descartáveis?"

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