quarta-feira, 23 de julho de 2008

As papas da Avó Isabel

via Sopas de Pedra by A. M. Galopim de Carvalho on 7/23/08
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Imagem colhida in: www.flickr.com
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A CASA DA MINHA AVÓ, na rua de Frei Brás, em Évora, já não existe. Tenho ideia que era o nº 30. No seu lugar, está lá outra. Eu nasci nessa rua, mas um pouco mais acima, no nº 24. Nessa casa, eu e o meu irmão Mário passámos muito do nosso tempo de crianças. Ali brincámos, aí nos zangámos e voltámos a brincar, vezes sem conta. Ali comemos e dormimos muitos dias e muitas noites, fruindo a doçura e a paciência da mãe da minha mãe, que assim procurava aliviar esta filha da carga dos cinco netos que lhe dera.
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Entre as muitas recordações desse tempo, a meados dos anos trinta, do século que acabou de virar, mantenho bem vivas as papas da minha avó Isabel. Feitas com farinha de trigo, que ela própria passava na peneira de seda, de malha mais fina, são um manjar de recordações que se libertam à mistura com os aromas da canela e da casquinha do limão.
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Ao aspirar-lhes o perfume, vêm-me à memória o cheiro a barro do ladrilho regado, um expediente contra o calor do Verão, ou o conforto da lareira nos dias de Inverno, onde ela as fazia, numa sertã de asa comprida, sobre uma trempe de ferro aconchegada ao braseiro. Vejo as cortinas das janelas com pavões em croché e duas grandes oleogravuras polícromas, pendendo da parede, uma evocando a implantação da República, outra, a travessia do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Vejo, ainda, o poial dos cântaros e o nicho na parede caiada, que lhe servia de aparador, e onde estava o copo da água sempre coberto por um naperão bordado. Oiço a sua voz doce, o crepitar da lenha e o chiar da água a abrir fervura na cafeteira e, ainda, o outro chiar, quando, misturado e mexido o café, lhe metia dentro a brasinha que lhe baixava a borra.
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Tão simples quanto boas, as papas da minha avó não levavam leite. Além da farinha, faziam-se com água, uma colherzinha de banha de porco, "para dar sustento", açúcar e uma casquinha de limão, tudo ao lume, mexendo sempre, no mesmo sentido, com a colher de pau, até engrossarem. Estavam prontas logo que a libertação do vapor, vencendo a viscosidade da mistura, começava a fazer bolhas espessas e sonoras.
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- Já estão a dar bufas! – Exclamava eu, logo que as via borbulhar, lentas e grossas.
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Nessa altura a avó arredava-as do lume e misturava-lhes o açúcar amarelo, que era o que então se usava, tornava a mexer bem e levava-as, de novo, ao borralho, durante mais uns instantes.

- Já estão boas – dizia eu, impaciente.
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- Não tenhas pressa que ainda temos de as deixar arrefecer primeiro. Assim quentes, fazem-te mal à barriga – avisava, experiente.
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A avó vertia-as, então, em pratinhos rasos, polvilhava-as com mais açúcar e, a seguir, com canela, a fazer enfeites. Depois era esperar um tempo, que sempre me parecia imenso.


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