sexta-feira, 4 de julho de 2008

Um texto sobre António Borges Coelho

Um texto sobre António Borges Coelho

via Caminhos da Memória de Diana Andringa em 03/07/08

Datas de batalhas, nomes e cognomes de reis: assim ensinada, a História nunca foi uma das minhas disciplinas preferidas. Talvez por isso, foi tão grande o prazer de ler o poema de Brecht, Quem construiu Tebas de sete portas («Quem construiu Tebas de sete portas?/ Nos livros estão os nomes dos reis. / Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?»)

Talvez por isso, muitos anos depois, tendo conhecido, por circunstâncias diversas e feliz dever de ofício, muitas pessoas cujas contribuições para a História comum merecem ser «contadas às crianças e lembradas ao Povo», leia, com gosto, estas palavras de um historiador, José Mattoso, sobre outro historiador, António Borges Coelho: «Para ele, a História não é trabalho de coleccionador de nomes e datas nem registo descarnado de bases de dados; também não é História verdadeira se só fala da glória dos grandes e esquece o rasto dos soldados, marinheiros e comerciantes anónimos que em terras longínquas afrontavam, com medo ou sem ele, a solidão, a aventura e a morte.»

Foi numa homenagem, em Mértola, há pouco mais de um ano. Porque, historiadores, me merecem ambos profundo respeito; porque, historiadores, lutaram e lutam pela memória; porque, cidadãos, lhes conheci atitudes verdadeiramente exemplares; porque o conceito de «passagem de testemunho» que no texto se refere me parece muito próximo das razões que justificam este blogue, gostava de deixar aqui as palavras que José Mattoso (a quem agradeço a oferta que nos fez deste texto) usou então, lembrando que Borges Coelho «não se limitou a falar, escrever ou ensinar».

Texto de José Mattoso:

No princípio da sua vida adulta arriscou a vida e a liberdade lutando contra a ditadura salazarista. Não virou a cara às agressões da tortura, da humilhação, da violência física e da prisão. Por isso pôde falar, ainda há poucos meses, em nome das vítimas do tribunal da Boa Hora da época salazarista, «gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo», e dizer que é preciso avivar a memória e lembrar as «mulheres e homens que nada tinham senão o corpo e a mente, e indicavam, com o seu sacrifício, que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa». Desprezou o cerco das ameaças, da marginalização e da vigilância da PIDE, viveu do seu trabalho como jornalista, e, sem bolsas, sem ajuda de ninguém, fez o seu curso de Histórico-Filosóficas.

Pedimos-lhe, enfim, professor Borges Coelho, que aceite esta homenagem por ter alcançado o mais alto lugar na hierarquia universitária, e por ter, como mestre, orientado, ajudado e encorajado muitos alunos e discípulos a desenvolver as suas capacidades. E ainda que a aceite por não ter esquecido os seus compromissos e o seu respeito pela cultura popular, por ter demonstrado sempre, na vida pública, uma atitude de clara e inteira responsabilidade cívica.

Prestamos-lhe, portanto, uma homenagem. No sentido que a palavra tem actualmente, a homenagem representa o reconhecimento público do mérito de alguém. Os méritos não faltam, na verdade, ao professor Borges Coelho. Enunciei aqueles que parecem mais verdadeiros e mais relevantes a quem se reuniu aqui nesta sala, para nela participar. Reconhecemo-los e proclamamo-los em alta voz, para que aquele a quem se dirigem tenha a certeza de que mereceu a pena enfrentar riscos e humilhações que só lhe fortaleceram a dignidade, mereceu a pena consagrar longas horas à investigação e à docência, mereceu a pena cultivar a força transfiguradora e simbólica da palavra poética e dramática. E, reciprocamente, para que, tendo recolhido os dons que ele com tanta generosidade espalhou no seu caminho, tomemos consciência do que dele recebemos, para medirmos a responsabilidade que da nossa parte devemos assumir, para proteger, cultivar e fazer frutificar a semente que com a sua vida lançou à terra.

O que neste momento fazemos tem alguma coisa de ritual de passagem. A luta, o trabalho e a acção criativa do professor Borges Coelho foram-se desenrolando ao longo de muitos anos. Eu, como menos cinco do que ele, sinto-me já, também, na fase dos balanços e da passagem de testemunho. Dou graças à vida (e creio que ele também), por me ter proporcionado alguns sucessos. Um daqueles que me é mais grato, e creio que a ele também, é o de perceber, em ocasiões como esta, que os nossos valores devem ser entregues a outras mãos, e que quem os percebe e recebe deve, por sua vez, transmiti-los a outros que deles façam semente de vida, de dignidade, de alegria e de liberdade. As palavras de agora destinam-se a conferir a este ritual a intensidade possível, para que ele fique gravado no nosso coração e na nossa memória e sirva de penhor a quem o guarda em si, para escolher, sem medo, o lugar justo nos combates de amanhã.

É neste sentido de ritual de passagem que estamos aqui para lhe prestar homenagem. Ocorre-me lembrar que a palavra, no seu sentido original, significava a cerimónia por meio da qual os cavaleiros se tornavam «homens» de um senhor, ou seja, seus vassalos. Reconheciam a sua condição e prometiam fidelidade. Apesar de esta comparação parecer incompatível com a acepção anterior, creio que afinal serve para reforçar o que com ela queria dizer. Não queremos, evidentemente, ser os vassalos de ninguém. Mas queremos, sem dúvida, ser solidários com o professor Borges Coelho, seguir os seus exemplos, lutar pelos mesmos valores, prolongar a sua obra. Ora ela contrasta de tal modo com os procedimentos que no nosso tempo se impuseram na vida profissional, na política, na vida pública e na educação, que só podemos imaginar uma atitude de combate para quem se sente do mesmo lado que ele. Não somos seus vassalos, nem seus cavaleiros, mas somos da sua família. Prestamos-lhe esta homenagem para afirmar isso mesmo.

Se comecei por enumerar as suas qualidades não foi para fazer o elogio que, na verdade, merece. Foi para dizer que esta cerimónia representa, da nossa parte, um compromisso: o de não nos conformarmos com as injustiças da sociedade em que vivemos, nem com a mediocridade que tantas vezes é garantia de sucesso, nem com as promessas de vantagens que corrompem e escravizam. Para dizer que representa, sobretudo, o compromisso de não ceder ao medo com que o frenesim da acumulação capitalista nos ameaça, ao projectar por todo o lado, não só nas empresas, mas também no sector público, nas escolas, na comunicação social, e até no mundo das artes, o fantasma asfixiante do medo - o medo dos despedimentos, o medo do desemprego, o medo da denúncia, o medo de ser diferente.

Queremos agradecer ao professor Borges Coelho ter-nos mostrado o caminho certo, seja o do combate frontal como o que ele travou na sua juventude, seja o da conquista de uma posição a partir da qual possamos fazer ouvir a nossa voz, como ele fez também, subindo, pela sua competência científica e a sua autoridade moral, ao topo da carreira universitária.

Queremos agradecer-lhe ter tido a coragem de, com risco da própria vida, militar no combate revolucionário de assim contribuir para eliminar um regime opressor e injusto.

Queremos agradecer-lhe ter feito da História uma demonstração de que o destino de Humanidade se decide de muitas e variadas formas, mas sobretudo no campo da luta de classes. Por isso estudou os vestígios concretos da cultura árabe entre nós, e demonstrou que a cultura nacional, longe de ter destruído os seus vestígios, os tinha incorporado sob a forma de técnicas de produção e trabalho próprios das classes trabalhadoras, e que elas representam a resistência popular à dominação aristocrática e burguesa. Por isso disse algures que «a luta social só perde o canto das armas nos braços que empurram a prensa, nos pés que calcam as uvas antes do mosto, nos troncos curvados ceifando as espigas».

Queremos agradecer-lhe ter demonstrado a falsidade da representação da história portuguesa como uma secular cruzada contra o Islão, e ter denunciado a iniquidade dos processos usados pelas instituições eclesiásticas que invocavam a fé para espalhar a destruição e a morte. Foi o que ele exprimiu quando perguntou: «Nas pinturas do Apocalipse de Lorvão, é a espada ou a cruz que corta as cabeças? Símbolo humano de redenção e sacrifício, a cruz virou espada que retalha e sacrifica, que abre os braços e logo crava o ferro». Por isso estudou a Inquisição de Évora, que, em nome da mesma cruz, esmagava o pensamento, espalhava o terror e a delação, e impedia o desenvolvimento cultural e económico.

Queremos, enfim, agradecer-lhe por não ter deixado que as marcas da repressão e tortura de que foi vítima, em vez de se traduzirem em ódio, antes desabrochassem em celebração da vida pela palavra poética, pela amizade do convívio, pela ironia bem humorada, pela disponibilidade e o optimismo. Às vezes, como dizia em nome do movimento Não apaguem a memória!, «é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa». Outras vezes, porém, como esta em que estamos aqui e agora, ao celebrar, com toda a alegria e com todo o afecto, este ritual de passagem, queremos dizer «sim», para que a mesma água da vida continue a correr limpa, ainda para além da morte.

José Mattoso

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